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A devoção dos neurônios

A relação entre espiritualidade e saúde já é estudada há algum tempo, mas começa a receber cada vez mais atenção -- tanto do público quanto da comunidade científica

Gláucia Chaves
postado em 22/11/2015 08:00

A relação entre espiritualidade e saúde já é estudada há algum tempo, mas começa a receber cada vez mais atenção -- tanto do público quanto da comunidade científica

;Todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura.; Em 1956, quando lançou sua obra-prima, Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa antevia uma discussão que até hoje não encontrou consenso. A ligação entre espiritualidade e psiquiatria é um campo de estudo antigo, mas que só agora é considerado passível de investigação científica. No início deste mês, durante a 33; edição do Congresso Brasileiro de Psiquiatria, a Associação Mundial de Psiquiatria (WPA) divulgou um posicionamento sobre o tema. Segundo a entidade, ;nas décadas recentes, tem havido uma crescente conscientização pública e acadêmica sobre a relevância da espiritualidade e da religião para os problemas de saúde;. Até agora, a WPA já identificou mais de 3 mil estudos afins.

Além da melhora na qualidade de vida e no ganho social do indivíduo, os trabalhos demonstraram que a espiritualidade tem implicações expressivas em campos espinhosos da psiquiatria, como a prevenção do suicídio e a recuperação de suicidas. A falta do lado espiritual (ou uma visão distorcida, ;fanática;) pode, por outro lado, piorar quadros depressivos e aumentar as chances de abuso de drogas, além de outros transtornos mentais.

Alexander Moreira-Almeida, coordenador das seções em espiritualidade e psiquiatria da WPA e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), explica que uma das definições mais aceitas de espiritualidade é ;busca pessoal por questões fundamentais sobre a vida;. ;Há até uma relação fundamental com o sagrado e o transcendente;, completa o especialista, que também é diretor do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Essas duas palavras ; sagrado e transcendente ; são centrais quando o assunto é espiritualidade. A partir delas, pode-se ou não formar uma comunidade, que seria, de acordo com Alexander, a religião. ;A religião é um sistema de crenças e práticas que busca a aproximação com o sagrado e com o transcendente. Uma religião seria a forma institucional, coletiva, de espiritualidade.; É perfeitamente possível, portanto, haver espiritualidade sem religião.

Segundo o médico, a previsão da ciência era de que a humanidade trocaria a religiosidade por uma visão estritamente materialista da vida entre o fim do século 19 e o início do século 20. Não foi o que aconteceu. A humanidade, em sua maioria, mantém crenças e práticas religiosas e espirituais. No Brasil, especificamente, a religião ainda é dominante: de acordo com um levantamento realizado pela UFJF, a Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas (Uniad) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 90% dos brasileiros preferem ter uma religião. Dos 9% que afirmaram não ter um credo, a maioria acredita em Deus. Os que se declararam ateus ou agnósticos não chegaram a representar 0,5% da população pesquisada. Outro dado interessante do Brasil é a mistura: o sincretismo religioso representou 10% dos entrevistados. ;Mais de um terço dos brasileiros frequenta um grupo religioso mais do que uma vez por semana;, completa Alexander Moreira-Almeida. ;Provavelmente, não há nenhuma outra atividade social, voluntária, não obrigatória que tanta gente faça com tanta frequência.; (Veja quadro na página 7)

Não restam dúvidas de que a população brasileira é extremamente religiosa. Mas até que ponto isso influencia na saúde? ;Há uma grande complexidade na relação entre os dois. Não é simplesmente dizer que a religião é boa ou ruim;, frisa o psiquiatra. A religiosidade, segundo ele, é algo multidimensional: é possível começar a investigação a partir das crenças religiosas do indivíduo, da frequência de orações, sobre o modo como a pessoa lida com os problemas por meio da religião. Cada uma dessas dimensões terá relações diferentes com os desfechos na saúde, como depressão, mortalidade e qualidade de vida.

Uma área bastante investigada é o impacto da religiosidade na depressão. Atualmente, de acordo com Alexander, há mais de 100 trabalhos sobre o assunto. O estudo ;Religiosity and major depression in adults at high risk: a ten-year prospective study; (Religiosidade e depressão maior em adultos de alto risco: um estudo prospectivo decenal), publicado em 2012 no periódico especializado The American Journal of Psychiatry, é um exemplo. O trabalho investigou a religiosidade de crianças em torno dos 10 anos de idade, filhas de pais com depressão em tratamento. O resultado foi: aquelas que se consideravam religiosas tinham 10 vezes menos risco de desenvolver depressão se comparadas às demais do grupo.

Ao longo do estudo, os médicos comparavam e avaliavam a espessura cortical das crianças. O que se percebeu é que, ao se tornarem adultos, esse indivíduos continuaram mais protegidos contra a depressão ; tinham o córtex duas vezes mais espesso que o grupo de controle. ;Parece ser um mecanismo biológico. A espessura cortical é um fator protetor contra a depressão;, detalha Alexander. Um outro estudo, feito pelo médico, foi realizado com 1.500 idosos carentes de São Paulo. A ideia era investigar a prevalência de transtornos mentais comuns: basicamente, sintomas depressivos e ansiosos. O resultado foi parecido: idosos que frequentavam serviços religiosos tinham menos da metade dos níveis de depressão e de ansiedade do que os que não frequentavam.

Para os idosos, a religiosidade foi a principal fonte de suporte social. Venceu, inclusive, família e amigos. Em um estudo de 2009, intitulado ;Religiosidade e espiritualidade no transtorno bipolar do humor;, Alexander Moreira-Almeida pesquisou 168 pacientes bipolares e descobriu que os pacientes que frequentavam serviços religiosos tinham menor frequência de quadros de depressão. O coping (termo da psicologia que se refere à forma com que encaramos os eventos da vida) religioso positivo também ajudou a manter a tristeza a uma distância segura.


O outro lado da fé


De modo geral, as questões religiosas enfatizam cuidar, valorizar o corpo como uma dádiva divina. Essa valorização da vida, por sua vez, estaria relacionada a menores níveis de violência, comportamento sexual de baixo risco e uma maior inserção na comunidade. Mas se a doutrina foge do controle, pode ocasionar sentimentos não tão amigáveis, como o fanatismo, a intolerância (não só religiosa), episódios depressivos, de pânico ou de ansiedade.

A religiosidade parece influenciar também aspectos mais primitivos, digamos, da psiquê humana. O vício, por exemplo. ;Quanto maior o nível de religiosidade, menor o abuso de drogas;, resume Alexander Moreira-Almeida. Entre os 12 mil estudantes brasileiros entrevistados por Alexander e sua equipe, em uma pesquisa sobre a influência da religião na dependência química, os indivíduos sem envolvimento religioso demonstraram o dobro da frequência de uso de tabaco, de álcool e de outras drogas. O comportamento suicida, de acordo com uma pesquisa feita pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e liderada pelo psiquiatra André Caribé, também pode ter relação com a espiritualidade: em indivíduos espiritualizados, a probabilidade de atentar contra a própria vida cai pela metade.

Bernard van Rensburg, presidente da Sociedade Sul-Africana de Psiquiatras (SASOP), diretor da SASOPs Spirituality and Psychiatry Special Interest Group (S SIG) e secretário da seção de espiritualidade e psiquiatria da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA), estuda, em especial, a relação entre ansiedade e espiritualidade. Segundo ele, o sentimento é um tema recorrente na maioria das religiões. A espiritualidade, em diversos credos, é, na maioria das vezes, ;descrita como uma experiência, algo que ultrapassa a mera observação. Não apenas uma ideia abstrata ou uma teoria;, completa o médico. Medo, ansiedade e estresse, Rensburg detalha, são respostas a ameaças conflituosas vivenciadas pelos religiosos. Do ponto de vista filosófico da religião, o médico explica que as principais respostas são o medo da morte, da falta de sentido da vida e a culpa.

Kenneth Pargament, professor de psicologia clínica na Bowling Green State University (EUA), publicou mais de 250 artigos sobre religião e saúde mental. Autor dos livros The psychology of religion and coping: theory, research and practice (A psicologia da religião e coping: teoria, pesquisa e prática, em tradução livre) e Spirituality integrated psychoterapy: understanding and addressing the sacred (Espiritualidade integrada à psicoterapia: compreensão e tratamento do sagrado), Pargament é considerado uma sumidade mundial no tema. O especialista reforça: a religião também pode ser fonte de sofrimento e angústia, a depender de como as crenças são encaradas. ;Muitas pessoas experimentam eventos traumáticos, mas não necessariamente enfrentam consequências negativas de saúde. Por outro lado, algumas pessoas enfrentam poucos eventos traumáticos ao longo da vida, mas sofrem bastante.;

Um dos problemas é que quando alguém considera algo sagrado, imediatamente tem medo de ;perder; aquilo ou de que suas crenças sejam violadas. Kenneth Pargament e sua equipe realizaram um estudo sobre os atentados terroristas que derrubaram os prédios do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001. ;Perguntamos se as pessoas consideravam os ataques uma violação de seus valores sagrados;, explica. ;Descobrimos que aqueles que encaravam o episódio como uma ofensa estariam mais dispostos a apoiar ações extremas, incluindo o uso de armas nucleares e biológicas.; Em outras palavras: quando as pessoas sentem que o sagrado foi violado, parecem desinibir qualquer controle emocional sobre a violência e a raiva.

Outra postura que pode causar problemas emocionais e psíquicos é como se encara o conceito de deus. ;Deuses pequenos;, segundo Pargament, não nos preparam para lidar com os problemas e as experiências da vida. Alguns exemplos: o ;deus da absoluta perfeição; (demanda uma conduta sempre perfeita), o ;seio celeste; (deus é amoroso em qualquer circunstância e nunca espera nada de nós em troca) e o ;deus policial; (que tudo registra para futuras punições). ;O problema do deus da absoluta perfeição é que ele não aceita nossos erros, assim como um deus ininterruptamente amoroso não nos prepara para a dor ou para decepções;, resume o médico.

Para o profissional, integrar espiritualidade e psicoterapia passa por um processo de conhecer o conceito: o primeiro passo, segundo Pargament, é entender o que se quer dizer com ;espiritualidade;. ;Uma das coisas mais importantes é aprender a ouvir com o quarto ouvido;, ensina. Se na psicoterapia ;ouvir com o terceiro ouvido; quer dizer escutar atentamente o que o paciente diz e o que ele não diz, o quarto ouvido seria a audição da alma, ou do sagrado. Só para frisar: o tratamento espiritualizado dentro da psicoterapia não é uma alternativa aos métodos convencionais de terapia, mas um complemento. ;Você não precisa escolher. É um tratamento integrado a qualquer modelo.;



A religião no mundo

Um levantamento feito em 65 países divulgado este ano pela empresa WIN/Gallup ouviu 64 mil pessoas e revelou os países mais espiritualizados do mundo:

* A Tailândia é a nação com mais religiosos: 94% dos entrevistados;
* China (7%), Japão (13%) e Suécia (19%) são os países menos crentes do mundo;
* Na América Latina, a Colômbia (82%), o Peru (82%) e o Panamá (81%) ficaram no pódio;
* 79% dos entrevistados brasileiros se declararam religiosos ; o que nos deixou em 23; na lista.




Veja outros dados da pesquisa de Alexander Moreira-Almeida:

* Ao todo, foram entrevistadas mais de 3 mil pessoas;
* 5% dos brasileiros declararam não ter religião;
* 83% consideraram a religião muito importante para sua vida;
* 37% frequentavam um serviço religioso pelo menos uma vez por semana;
* As filiações religiosas mais frequentes foram catolicismo (68%), protestantismo (23%) e espiritismo kardecista (2,5%);
* 10% afirmaram frequentar mais de uma religião;
* De modo semelhante a estudos em outros países, maior idade e sexo feminino se associaram a maiores níveis de religiosidade subjetiva e organizacional, mesmo após o controle para outras variáveis sociodemográficas;
* Entretanto, nível educacional, renda e raça negra não se associaram de modo independente a indicadores de religiosidade.

Fonte: Pesquisa ;Envolvimento religioso e fatores sociodemográficos: resultados de um levantamento nacional no Brasil;

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