Revista

As batalhas de rima do DF: os gladiadores do intelecto

Jovens se reúnem para treinarem o intelecto. Eles se enfrentam em batalhas de rima: uma brincadeira com as palavras que ocupa os espaços da cidade, valoriza a cultura com debates sobre temas políticos e sociais

Ailim Cabral
postado em 07/05/2017 08:00
grupo de jovens se reúne em círculo, fazendo batalha de rimas
As batidas do hip-hop se misturam às do rap e às do reggae. As ;minas; se unem aos ;manos;; os mais velhos recebem os mais novos; as satélites ocupam o Plano Piloto. São assim as batalhas de rima, ou batalhas de MC, do Distrito Federal: agregam, somam e fortalecem. Cada vez mais fortes e numerosos, esses encontros invadem todos os espaços da cidade com cultura e representatividade.

Muito distante do conceito violento do termo, as batalhas são permeadas por atmosfera pacífica e divertida. Seja na Praça do Relógio, em Taguatinga, ou no Museu da República, no coração da capital federal, as pessoas chegam, cumprimentam os amigos e conhecidos, riem e conversam enquanto entram no clima para duelar e assistir às apresentações.

Uma ou duas pessoas circularam pela multidão com um caderno e uma caneta. Parecem ímãs, seguidos de perto por uma rodinha de MCs. Eles são os responsáveis por anotar os nomes que serão sorteados para batalhar nos duelos de rima e de raciocínio rápido.

O objetivo é que os mais corajosos e talentosos desafiem o outro a debater temas pela combinação de sons das palavras. É hora de os caras se provocarem, se alfinetarem nas brincadeiras. As meninas aproveitam para trazer à tona temas espinhosos e tão reais em suas rotinas, como feminismo.

Em algumas listas, o número de inscritos passa de 50. Normalmente, 16 são sorteados e começam as eliminatórias. No instante em que a batalha se inicia, a multidão empolgada se mantém em silêncio para acompanhar as farpas trocadas entre os competidores. Mas quando um MC ;manda muito bem;, é impossível conter o grito de aprovação. Um sonoro ;ooooou; se faz ouvir e o adversário precisa pensar rápido para garantir o mesmo apoio da plateia. Afinal, o voto dos espectadores têm o mesmo peso da escolha dos dois juízes.

Os ânimos parecem se exaltar durante os duelos. Rolam alguns xingamentos, ofensas e palavrões, arrancando gritos da multidão. Uma vez terminado o round, os MCs riem, dão as mãos e alguns até se abraçam, garantindo que a rivalidade se limita ao microfone.

O vencedor ganha moral. Suas ideias são aplaudidas. As crianças querem fazer foto ao lado dele. Costuma ganhar quem pensa mais rápido e consegue ;vencer; o outro ;intelectualmente;, ainda que a temática seja lúdica e provocativa.

É difícil não se contagiar com aquele ritmo de fala e de música. Sem perceber, muita gente entra no clima, mexe o corpo na cadência da percussão e vibra com as tiradas inteligentes dos duelistas. As batalhas acontecem todos os dias da semana, em diferentes lugares da cidade e, apesar de a maioria ser jovens adultos e adolescentes, é possível ver famílias, crianças e até um público mais maduro de olho no movimento.

A batalha das batalhas

Campeões de batalhas, Israel e Carlos Roberto dizem que o desafio é diversão e uma forma de afastar os jovens da violência
A Batalha do Museu é a mais antiga entre as que estão em atividade no DF. Completou cinco anos e se transformou em um ponto de encontro de outras batalhas da cidade. Todos os domingos, a partir das 16h, uma média de 150 a 300 pessoas se reúnem entre a Biblioteca Nacional e o Museu da República para assistir aos melhores do DF duelando.

Toda semana, 10 batalhas são sorteadas e os ganhadores têm vaga garantida para essa apresentação. O último campeão também está dentro e as cinco vagas remanescentes são sorteadas entre os que colocaram o nome na lista. O momento é de expectativa e todos esperam a oportunidade de rimar com os vencedores.

A história da Batalha do Museu começou em 2010. Na época, só existiam três batalhas no DF: na Praça do Bicalho, no Conic e no Recanto das Emas. A periodicidade também era diferente e elas só aconteciam uma vez por mês. ;Quando o MC perdia, ficava indignado, pois tinha que esperar um mês para ter a chance de se redimir ou de ter uma revanche;, lembra Thiago Afonso Rocha, 25 anos. Mais conhecido como MC TR, o servidor público é um dos organizadores da Batalha do Museu.

A primeira da qual Thiago participou foi uma batalha em São Paulo, em 2011 e, dois anos depois, tornou-se parte da organização do evento no Museu. ;Ostentar a expressão MC antes do meu nome é uma responsabilidade. As pessoas saem de casa para ouvir o que nós temos a dizer e, estando à frente do movimento, passei a me cobrar mais. Tenho que agir corretamente, pois não posso levantar bandeiras na rima e não me comportar de acordo nas ruas;, acredita.

"O monstro apareceu, o monstro apareceu;
A bagaça é nossa na Batalha do Museu"

Antes, MC TR e outros artistas da cena do rap de Brasília dispunham de poucas opções para rimar. Em 2012, teve um desafio entre o DF e Belo Horizonte, cidade com tradição nas batalhas. O grupo de amigos de Thiago alugou uma van, e oito brasilienses seguiram para o duelo. ;Lá, tivemos contato com grandes nomes da rima, com caras que começaram rimando com Emicida. No fim, um dos nossos MCs chegou à final e voltamos muito empolgados. Vimos que éramos bons e podíamos seguir em frente. Quando chegamos aqui, o MC Zen criou a Batalha do Museu;, lembra.

Assim como MC TR, os estudantes Carlos Roberto Jesus de Souza, 20 anos, e Israel dos Santos Pereira Lopes, 15 anos, são figurinhas carimbadas em tais encontros. Carlos, mais conhecido como Draw, rima há dois anos e já foi campeão da Batalha do Museu diversas vezes, aliás, participa de uma disputa todos os dias. ;Para mim, é diversão, distração e aprendizado. As rimas alegram meu dia e me sinto honrado de poder alegrar o dia de alguém com as minhas (rimas);, afirma.

Apesar de mais jovem, Israel também já foi campeão da Batalha das Batalhas. ;É mais que um hobbie, é um trabalho. O valor que tem para a comunidade é enorme, as batalhas têm o poder de tirar os jovens do crime. Eu digo isso porque é verdade, foi assim comigo;, completa.

[VIDEO1]

Ocupar para rimar


As pessoas que se reuniam toda semana nesse monumento da Esplanada dos Ministérios sentiram falta de ter eventos parecidos em suas cidades e as batalhas começaram a se multiplicar. Hoje, acontecem cerca de 30 por semana, espalhadas por todo o DF e entorno.

Um grupo de MCs de Taguatinga resolveu criar a Batalha do Relógio. O objetivo era descentralizar e transformar a Praça do DI em mais um ponto de encontro dos rimadores do DF. Para escolher o local, os idealizadores consideraram a facilidade de acesso ; ao lado da estação de metrô ;, e a possibilidade de transformar a imagem da praça, associando o lugar a um espaço de atividade cultural.

;A praça tem vida, muita cultura e potencial. Queremos tirar esse preconceito que a ronda;, afirma o MC Thiago Cardoso Martins, 24 anos. Um dos idealizadores dessa batalha, e mais conhecido como Cardoso, o MC ressalta que criar cultura em um lugar tão carente de opções de diversão gratuitas é uma grande oportunidade. ;Aqui, todo mundo tem voz e pode propagar a cultura.;
[VIDEO2]
A batalha nasceu há três anos e acontece todas as quintas. As inscrições começam às18h e o sorteio ocorre por volta das 19h30. O evento já chegou a reunir 200 pessoas e tem público diversificado. Muitas famílias se unem aos jovens para assistir às rimas, pessoas que estão só de passagem param para curtir o som e alguns aproveitam o momento de lazer para levar os cachorros para passearem.

O MC Silas Augusto Pessoa da Cunha, 21 anos, se diz orgulhoso de fazer parte do movimento. ;Aqui, até os playboys rimam. Queremos celebrar a diversidade e lutar pelo que achamos certo. Mostramos para a polícia que respeitamos o espaço e ajudamos a torná-lo melhor. É um aprendizado. Hoje, consigo dar felicidade para minha mãe e a respeito muito mais. É importante mostrarmos isso para outros jovens;, ressalta.

O design gráfico Nauí Lopes Paiva, 31 anos, acredita que o movimento tende a crescer cada vez mais. ;Vivenciei o início da Batalha do Museu e participei da criação da do Relógio. Vejo isso com muito orgulho e percebo que instiga um certo empreendedorismo nos MCs, sempre tentando aumentar e valorizar o rap;, comemora.

MC Nauí
;Focar dentro de ti pra todo bem florescer
Com toda leveza e toda nobreza
Retirando toda impureza
Pra vir a grandeza, beleza, riqueza;


Rimando entre os meninos, a estudante Letícia Ribeiro Farias, 17 anos, a Fugazi, mostra que também tem voz. Ela começou a rimar há seis meses e frequenta uma batalha por dia, incluindo a do Relógio. Na última semana, ganhou outras disputas da cidade e foi rimar no Museu. ;No início, eles diziam que eu ia gaguejar, que não ia conseguir. Mas quando criamos coragem e ganhamos, eles passam a nos respeitar mais; afirma, sobre o machismo que ainda ronda o mundo dos MCs.
Letícia Farias participa das batalhas há seis meses. Coragem e vitórias conquistam o respeito dos meninos
Fugazi afirma que é importante não levar as ofensas para o lado pessoal e que gosta de batalhar tanto com meninos quanto com meninas. ;As meninas costumam ser menos agressivas, algumas até se elogiam nas rimas. Os meninos não têm essa: seja homem ou seja mulher, pegam pesado e isso me ajuda a rimar melhor;, acredita.

Luta de pensamento


O Teatro de Arena da Universidade de Brasília é inspirado nas edificações antigas, onde o público assistia a espetáculos de dramaturgia e também combates. Usado pelos alunos em diversas situações, como na divulgação de resultados de vestibular e festas, o espaço completa seu destino e se torna palco de entraves inesquecíveis na Batalha da Escada. Diferentemente do que ocorria na Antiguidade, as lutas não são corporais, mas sim intelectuais.

A Batalha da Escada é uma das mais recentes na cidade. Em dois anos de existência, já conquistou um dos maiores públicos entre as outras. Todas as quartas-feiras, a partir das 18h, cerca de 500 pessoas se reúnem para assistir aos duelos que começaram como uma brincadeira entre amigos.
[VIDEO3]
A batalha segue um esquema próprio. Se a lista de inscritos tiver menos de 25 pessoas, 16 são sorteados para batalhar. Quando as inscrições ultrapassam 25, o número de rimadores pula para 20. Pela grande quantidade de interessados, os organizadores implantaram um sistema de cotas. Entre as vagas sorteadas, duas pertencem às mulheres e outras duas aos que estão rimando pela primeira vez.

Na organização do projeto desde o início, os estudantes Raphael Steigleder, 24 anos, e Rafael Montenegro, 23, estavam presentes na primeira noite em que os criadores André Henrique e Pedro Alencar se reuniram. ;A estreia vez não foi nem na Arena, foi debaixo da árvore que fica do lado. Éramos um grupo de poucos amigos, tocando violão e ao som de celular, quando começamos a rimas por diversão;, revela Raphael.

Os encontros continuaram acontecendo toda semana e, um mês depois, os amigos se surpreenderam com a presença de quase 50 pessoas. No terceiro mês, o público chegou a 100 estudantes. Para que o evento não perdesse a essência, foi criada uma comissão de organização.
Os amigos Rafael, Raphael (em cima), Joaquim e Lucas fazem parte dos jovens que transformaram a Arena da UnB em um palco de luta intelectual
Parte do movimento desde o início, Rafael afirma que a batalha é um aspecto fundamental da sua vivência como estudante e indivíduo. ;A gente ajuda a UnB a cumprir seu propósito. É um movimento estudantil, e nós trazemos uma cultura marginalizada para dentro da universidade, incentivando a criatividade e criando um espaço de diálogo. Era isso que Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira queriam;, acredita.

"UnB, 18h, quarta- feira, mil grau
Batalha da Escada, degrau a degrau"


Lucas Cândia, 24 anos, faz parte da gestão da batalha há cinco meses. Ele filma e edita as pelejas. Um pouco tímido para rimar, garante que cumpre seu papel ao cuidar da divulgação do projeto. Para Lucas, a Batalha da Escada tornou-se um espaço de representatividade cultural, que atrai gente que não estuda ali para dentro da universidade, tornando-a mais democrática. ;As pessoas vêm de todos os lugares. Vemos a periferia representada, conquistando seu direito e seu espaço. Ocupar esse lugar é muito importante. Conseguimos deixar o ambiente mais crítico, menos preconceituoso. É uma integração por meio da cultura hip-hop;, acredita.

Assim como os colegas, Joaquim Barbosa dos Santos Júnior, 22, é um dos organizadores. Joaquim acredita que auxiliar na criação e na manutenção do evento é fazer algo pelo seu próprio ambiente, ocupando o espaço e tirando a frieza da cidade.

Os amigos afirmam que o público da batalha é heterogêneo e que as rimas seguem uma linha mais ideológica e social. ;Acho que é menos sangrenta. Os MCs não se atacam, trocam ideias. Uma vez até disseram para gente que para batalhar na Escada tinha que estudar e se preparar primeiro;, ri Raphael.

Empoderamento feminino no hip-hop


Apesar de haver diminuído nos últimos anos, o machismo ainda é muito presente nos espaços do hip-hop. As mulheres são aceitas nas batalhas e, muitas vezes, ganham dos rapazes, mas ainda enfrentam ofensas e uma certa dose de preconceito. Para ter um pouco mais de liberdade nas rimas e treinar para vencer as batalhas semanais, um grupo de amigas criou a Batalha das Gurias (BDG). O evento acontece uma vez por mês e se tornou itinerante, passeando pelo DF e até mesmo por outros estados, como Goiás e São Paulo.

Camila Rodrigues e Dihéssika Wendy são organizadoras da Batalha das Gurias. Em rimas, falam de homofobia e feminismoIdealizadoras do projeto, as estudantes Dihéssika Wendy, 20 anos, e Camila Rodrigues Oliveira, 20, contam que o grupo começou com quatro mulheres e hoje já soma 15, que participam de todas as edições. Di, como Dihéssika é mais conhecida, conta que, no início, rimava com os homens e continua participando das disputas mistas, mas que muitas meninas começam na Batalha das Gurias e, só depois de praticar bastante, têm coragem de participar de eventos maiores. ;Comecei em Sobradinho e aprendi a lidar com as coisas mais pesadas e a bater de frente. É bacana, mas nas nossas batalhas temos um espaço maior para falar sobre feminismo e sobre questões sociais e políticas. Isso nos fortalece.;

Apesar de achar a Batalha das Gurias mais acolhedora para quem está começando, Di afirma ser importante manter a presença feminina nos outros eventos. ;A Escada é o lugar que mais tem ;minas; rimando, depois da BDG. Tem melhorado muito e estamos cada vez mais presentes, rompendo o machismo, sendo bem recebidas. E ainda ganhando as batalhas regionais. Isso nos empodera;, comemora Di.

Camila passou quase dois anos assistindo às rimas antes de ter coragem de participar de uma. ;Não me via como protagonista, só como plateia. Na BDG, tive coragem de rimar pela primeira vez e foi incrível. Hoje, já me sinto à vontade para participar de outros encontros;, conta, animada.

A estudante ressalta que, apesar da vergonha de se apresentar para grandes públicos, as batalhas têm um valor fundamental em sua vida. ;É muito importante no processo de criação de identidade. Isso me ensinou a romper barreiras, conhecer pessoas a participar de debates diferentes e me inserir nesse contexto;, afirma.

"Lugar de mulher é onde ela quiser e não só onde você quer que ela trabalhe. Lugar de mulher pode ser sim no palco fazendo freestyle"

A BDG é pioneira, foi a segunda batalha só de ;minas; a ser criada no Brasil. Camila e Di se dizem orgulhosas e, ao mesmo tempo, sentem o peso da responsabilidade de representar as mulheres do país e da capital dentro da cultura hip-hop. Para elas, a BDG é um encontro de guerreiras cheias de empoderamento.

Na BDG é proibido tocar no adversário e ter falas racistas ou homofóbicas. ;Essa coisa de encostar no outro já deu até confusão em batalha. Sobre racismo e homofobia não precisa nem falar, né?! Não aceitamos;, garante Di.

O campeão é brasiliense!

Sid aprendeu a rimar sozinho. Quando  desafiou um adversário,  tornou-se  campeão nacional da modalidade
O brasileinses Sid, 20 anos, é o atual campeão nacional de batalhas de rima. Aos 16 anos, resolveu ;brincar; de rimar com um grupo de amigos e ficou surpreso com a facilidade. ;Foi até engraçado, fiquei superempolgado, não dormi e rimei a noite inteira. Passei uma semana tentando rimar com minha mãe, com meu irmão e com qualquer pessoa que falasse comigo;, lembra.

Passou um ano rimando sozinho. ;Gostava muito, mas não conhecia ninguém que fizesse isso, então, praticava só;, conta. No Ensino Fundamental, Sid se inscreveu na Batalha de Sobradinho. ;Ganhei a primeira, perdi a segunda. Mas foi muito massa porque percebi que eu conseguia batalhar com quem rimava mesmo. Aí, eu comecei a ir a todas;.

O estudante conta que chegou a enfrentar um certo preconceito por ser morador do Lago Norte e chamado de ;playboy; pelos MCs. Mas, assim que rimou pela primeira vez, passou a ser respeitado e querido pelo seu talento. ;É uma família. Apesar da desconfiança do início, fui recebido de braços abertos quando mostrei por que estava ali. Foi a primeira vez que me senti aceito de verdade;, afirma.

Em 2015, viu MC Alves batalhando e indo para a final do campeonato nacional. ;Era muito fã dele e quando o vi chegando na final, me senti inspirado. Disse para mim mesmo que eu queria ser o próximo. Passei a ir à batalha todos os dias e cheguei a ganhar nove, em uma única semana. Nas eliminatórias, batalhei com ele e isso foi um marco na minha vida.; Depois de vencer seu ídolo, Sid foi classificado e viajou para Belo Horizonte, trazendo na mala o título de campeão nacional.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação