Biografia da voz a Almerinda Gama, sufragista negra apagada pela história

Livro de Cibele Tenório mostra como a jornalista e feminista alagoana foi ofuscada pelas colegas brancas e de classe alta na luta pelo voto feminino

postado em 01/12/2025 02:00
Biografia da sindicalista, jornalista e feminista Almerinda Gama corrige injustiça histórica em torno da alagoana, que também defendia o direito ao divórcio

 -  (crédito: CPDOC/FGV/REPRODUÇÃO)
Biografia da sindicalista, jornalista e feminista Almerinda Gama corrige injustiça histórica em torno da alagoana, que também defendia o direito ao divórcio - (crédito: CPDOC/FGV/REPRODUÇÃO)

A conquista do voto feminino é um capítulo escanteado da história brasileira. Durante muitos anos, a ideia prevalente era a de que não havia muito mistério: Getúlio Vargas assinou um decreto concedendo às mulheres brasileiras o direito de eleger representantes e de serem eleitas em 1932, e fim de papo.
Nas últimas décadas, pesquisadoras vêm desmistificando a ideia de que o sufrágio feminino foi fruto de benevolência masculina. É dentro desse campo que se encaixa a pesquisa que deu origem ao livro "Almerinda Gama: A sufragista negra", da jornalista Cibele Tenório.


Publicada em junho, a biografia teve origem na dissertação de mestrado de Cibele na Universidade de Brasília (UNB), sob orientação de Teresa Cristina Novaes Marques – professora referência nos estudos sobre a conquista do voto feminino.


Faz sentido, portanto, que o livro combine o rigor acadêmico com a fluidez do texto jornalístico para contar a história de uma mulher esquecida dentro de um movimento que costuma ele próprio ser deixado de lado.


Sindicalista, jornalista e feminista, a alagoana Almerinda Farias Gama foi ofuscada pelas colegas brancas e de classe alta que se tornaram os rostos públicos do sufrágio feminino.


Seria exagero dizer que Bertha Lutz, presidente da Fundação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), e Carlota de Queirós, primeira deputada federal do país, são mulheres conhecidas do grande público.
Mas as duas emprestam seus nomes a prêmios oferecidos pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, respectivamente. Bertha foi mencionada pela primeira vez na Folha da Manhã, em 1926. Almerinda só surgiu nas páginas da Folha em 1987, para depois reaparecer só em 1994.


Se a filha do médico Adolfo Lutz acompanhou o movimento sufragista britânico enquanto estudava no exterior, Almerinda ficou nove anos sem poder acessar a escola, para depois se formar datilógrafa.


Divergências

As diferenças entre as duas são bem marcadas no livro de Tenório, que destaca como a identidade de trabalhadora era central para Almerinda. Ainda assim, a biografia não exagera os conflitos, expondo de forma criteriosa as divergências entre as feministas, seja na vida ou nas posições políticas.
A presidente da FBPF, por exemplo, evitava se posicionar contra o divórcio, enquanto a sufragista alagoana, viúva, o defendia publicamente em artigos de jornais.


A amizade entre as duas também é dissecada, e a autora mostra como foi essencial para o sucesso do movimento sufragista o papel desempenhado por Almerinda nos bastidores da FBPF – onde era voluntária com serviços de datilografia e assessoria de imprensa, entre outros.


Almerinda se candidatou duas vezes a cargos públicos, sem ter sido eleita. Há relatos saborosos de cenas como a da eleição classista de 1933, quando a datilógrafa representou o sindicato da categoria – que, na verdade, havia sido criado por ela e outras mulheres da FBPF só para que elas pudessem disputar uma vaga na Câmara.


O livro também tem força ao explorar a vida particular da sufragista, mostrando por um lado as limitações da vida possível para uma mulher no início do século 20 no Brasil e, por outro, os truques e táticas de Almerinda para esgarçar esses limites.


Depois de ficar viúva aos 26 anos, nunca mais se casou, em uma sociedade que esperava que mulheres fossem tuteladas por homens. Não teve filhos – de sangue, pelo menos, mas dizer mais do que isso seria estragar uma das mais interessantes surpresas da biografia. Ela abria a casa que construiu no Cachambi, Zona Norte do Rio, para amigos, agregados e órfãos precisando de abrigo.


A biografia corrige uma injustiça histórica ao dar voz a Almerinda, que viveu quase 100 anos de uma vida extraordinária, e a põe em seu devido lugar de destaque como um medalhão do movimento feminista brasileiro. (Angela Boldrini/Folhapress)

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