Diversão e Arte

Autoras chamam a atenção para a realidade do feminicídio em novos livros

Escritoras brasileiras convertem em literatura a triste realidade dos feminicídios no país

ROBERTA PINHEIRO
Roberta Pinheiro
postado em 12/11/2019 06:55

[FOTO5]

Um personagem sem nome que, fora da ficção, poderia ser Francisca, Letícia, Noélia. Três mulheres entre as 28 vítimas de feminicídio no Distrito Federal este ano. Ao escrever Mulheres empilhadas, primeiro romance de temática e protagonismo feminino em 25 anos de literatura, a escritora Patrícia Melo decidiu que não nomearia a protagonista: ;Queria mostrar que você pode ser uma vítima desse máquina de extermínio que está em ação. Vítima de uma sociedade patriarcal e machista. O feminicídio é um crime democrático. É sempre a mesma história, o que muda é a vítima e a classe social;.

No decorrer da trama, Patrícia cruza realidade e ficção em uma obra dividida em três partes. O índice numérico (de 1 a 11) apresenta casos reais retirados das páginas dos jornais; o índice alfabético (de A a Z) retrata a história central de uma advogada paulista, entre dilemas e descobertas; e o índice de alfabeto grego (de alfa a etá) se dedica aos encontros da advogada, protagonista, com uma tribo de guerreiras amazônicas, a parte mais onírica do livro.

;A jovem advogada foge de uma relação abusiva e vai para o Acre cobrir um mutirão de feminicídios. O gatilho que a faz tomar essa decisão também a leva a repensar uma história pessoal. O leitor fica sabendo que ela tem uma história de violência contra a mulher na família. A mãe foi assassinada pelo pai e ela presenciou o crime, mas não se lembra. Então, na viagem, ela mergulha em busca do passado, ao mesmo tempo que vai conhecendo os casos de feminicídio. A floresta e toda a cultura indígena entram na parte onírica do livro, na qual a personagem, por meio do ritual da bebida da cultura indígena, passa a se autoconhecer, começa a recuperar a memória do passado traumático. Cria uma espécie de sociedade imaginária de vingança, forma uma tribo com as guerreiras da floresta e sai para acertar as contas com os homens opressores. É uma parte com mais humor, que tem um contrapeso com o peso do feminicídio;, adianta Patrícia.

Com uma escrita direta e, ao mesmo tempo, dura e poética, a escritora converte em literatura a realidade noticiada em manchetes de jornais que, muitas vezes, é difícil de acreditar. De questões judiciais e legislativas ao primeiro sinal de violência que, por medo, é silenciado. No caso da personagem de Patrícia, um tapa, por ciúmes, durante uma festa, foi o gatilho que provocou um ruído interno e externo. ;A diferença entre mim e as outras vítimas é que eu sei que isso é uma fase de um contínuo de violência que termina no feminicídio;, relata a protagonista ao começar a digerir os fatos.

Para Patrícia, ao receber o convite da editora LeYa de escrever um romance com a temática da mulher, era urgente a escrita sobre a ;matança; e a ;produção de cadáveres femininos;. ;A sensação de ser qualquer pessoa é também porque o feminicídio é só a ponta do iceberg da violência, é a parte da violência que você vê, é a letalidade. Há uma história de violência silenciosa, uma violência destruidora do ego da vítima, como se ela fosse perdendo a própria identidade. Queria que ela não tivesse nome, porque é como se ela fosse reconstruir a própria identidade;, explica.

Nas páginas de Mulheres empilhadas, a escritora traz várias nuances desse difícil contexto. As dúvidas, o sentimento de culpa, as descobertas e, depois de tantas vozes masculinas em suas obras, permite a profusão de mulheres em diferentes perfis. ;Quis trabalhar o conceito de . Nós crescemos aprendendo que não se deve confiar em mulher, mas é preciso entender a questão feminina sem esses clichês que nos são impostos;, pontua.

Livro reportagem

Enquanto Patrícia Melo se debruça sobre uma protagonista sem nome e costura realidade com ficção, a jornalista mineira Sulamita Esteliam narra a história de um crime ocorrido em Recife, nos anos 1990. Em nome da filha é um romance reportagem sobre o assassinato de Mônica, em um período no qual não existia Lei Maria da Penha, e, principalmente, sobre a luta de uma mãe para fazer justiça pela filha.

;Apareceu de uma entrevista que fiz com a mãe da vítima para o jornal da entidade, no qual trabalhava a assessora de comunicação quando a mãe estava buscando apoio para divulgar o julgamento do algoz da filha dela. Ela tinha consciência de que precisava do apoio da mídia e, como não tinha muito relacionamento da imprensa, procurou movimentos sociais. Foi uma conversa de cinco horas, ela fumou quatro carteiras de cigarros, a dor exalava, eu fui ficando arrepiada, até determinado ponto, quando ela me perguntou: soube que você é escritora, verdade? Essa história dá um livro, né? Você quer escrever esse livro?;, relembra a jornalista.

Do primeiro contato até o lançamento da publicação, Sulamita e Gercina ficaram confidentes. Infelizmente, a mulher não pode acompanhar o material impresso, mas viu a pesquisa e a apuração da jornalista, inclusive, para tentar entrevistar Carlos, o autor do crime, e tentar responder insistentes perguntas. Que estranho poder é esse que leva uma mulher a colocar a própria vida em risco para continuar ao lado de um homem que a maltrata? O que o move? Como explicar tamanha obsessão? Que amor é esse? ;Busquei incessantemente, mas não consegui determinar. Ao mesmo tempo que Mônica era apaixonada por ele, tinha pavor dele. Não conseguia se livrar dele e ela se autopunia por não resistir. Tinha uma culpa profunda;, comenta Sulamita.

A autora desembarca em Brasília para lançar o trabalho na terça-feira, 26 de novembro, o Tiborna ; Bar e Comedoria, na 403 Norte, acompanhada da jornalista Clara Arreguy, que fará a apresentação.

Duas perguntas // Sulamita Esteliam

Você acha que se a Lei Maria da Penha existisse, o caso da Mônica seria diferente?

Nós temos a lei, que é reconhecida internacionalmente, uma das mais rigorosas no combate à violência doméstica. Ocorre que falta estrutura nos estados, nas cidades, para acolher a vítima. Não basta só ter a lei, não é só combater a impunidade. Está ligada a repetição. Embora esse tipo de violência ocorra em qualquer classe social, as mulheres precisam de apoio psicológico e financeiro. A eficácia da lei se perde na falta de estrutura. Por outro lado, hoje o silêncio é menor, existem canais para denúncia, isso eu acho positivo. Contudo, enquanto não se mudar a cultura de posse, a gente não chega longe. É preciso mudar a educação, a cultura machista, misógina que é reproduzida geração após geração na educação das crianças.

Por que optou por escrever uma narrativa com protagonismo feminino, principalmente, da mãe?

Gosto de escrever sobre mulheres. Venho de uma família na qual as mulheres sempre assumiram o papel que tinham que assumir. Além disso, no exercício do jornalismo, vejo que esse povo precisa de voz, é a parte mais frágil desse elo, embora ela desconheça a própria força, de reagir, de resistir, de superar, de ser ela mesma, de criar a família, ela é protagonista da sua própria vida.

[FOTO1]

Duas perguntas // Patrícia Melo

O que você espera com a publicação do livro Mulheres empilhadas?

Não acredito que a literatura tem uma função social. Esse é meu livro mais político, é um momento que a gente tem que tomar posições. A situação da mulher no Brasil é complicada. Quero chamar atenção do meu leitor para essa realidade e acho que, com a literatura, o leitor pode olhar com empatia para essa realidade e isso já é uma grande conquista. A beleza da literatura é conseguir transportar o leitor para uma realidade diferente da dele com um olhar empático.

O que a escrita do livro provocou em você como mulher?

A gente não pode aceitar uma realidade na qual 13 mulheres por dia assassinadas. Foi uma escrita difícil, fiquei bastante mobilizada com o assunto. Os casos são subnotificados, os números são muito maiores do que a gente conhece. Acho que o livro me transformou numa feminista, me engajou numa situação da mulher com uma garra feminista.

Serviço

[FOTO3]

Mulheres empilhadas

De Patrícia Melo. Editora LeYa Brasil, 240 páginas, R$ 39,90.

Em Nome da Filha

De Sulamita Esteliam. Editora Viseu, 196 páginas, R$ 40.

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação