Correio Braziliense
postado em 16/04/2020 10:30
“Toda palavra tem que ser usada”, gostava de dizer Rubem Fonseca quando questionado sobre os palavrões e obscenidades presentes em seus mais de 30 livros. Ali, na literatura mais policial que o Brasil teve na segunda metade do século 20, tudo era permitido. Na vida fora dos livros, no entanto, Fonseca era um mistério. Deu pouquíssimas entrevistas e pouco aparecia. Foi Zuenir Ventura quem explicou, em um texto carinhoso publicado em 2015, que o amigo escritor não era exatamente recluso — gostava sim de ir ao cinema, encontrar os amigos e até viajar —, mas Fonseca, morto na tarde de ontem, aos 94 anos, no Rio de Janeiro, morria de medo de virar celebridade, de ficar mais importante que a própria obra. Até o fechamento desta edição, a família não se pronunciou sobre o enterro, que deve ser discreto por causa da pandemia de coronavírus.
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“Zé Rubem não discriminava palavras pelo valor moral, trabalhava com palavrões por uma escolha estética e ética”, explica Ventura. “Ele tinha aquela dupla personalidade de ser recluso, não dar entrevistas como figura pública e pessoalmente ser uma pessoa divertida. Por vezes questionei o Zé sobre esse jeito dele e ele sempre respondia: ‘eu não sei porque sou assim’.”
Rubem Fonseca nasceu em Juiz de Fora (MG), mas cresceu no Rio de Janeiro. Tem uma trajetória nada estranha quando se leva em conta os livros que escreveu. Formado em direito, começou a carreira como comissário de polícia em São Cristóvão, no Rio de Janeiro. Na Escola de Polícia, era conhecido por entender de psicologia, a mesma que aplicava a personagens como o comissário Alberto Mattos, de Agosto, e ao detetive Ivan Canabrava, de Bufo & Spallanzani, para citar dois de seus livros mais conhecidos.
Estreia
Com Os prisioneiros, publicado em 1963, o autor estreou na cena literária, sem nenhum aviso prévio, já que a carreira mais apontava para o mundo policial real do que o dos livros. Essa reunião de 12 contos trazia uma coleção de personagens resilientes e viscerais, os mesmos que povoariam o mundo do autor. Mendigos, bandidos, matadores profissionais, prostitutas assassinadas, detetives duvidáveis, investigadores perversos, o material bruto e brutal, assim como a própria escrita do mineiro, estava lá, embora tenha sido com Feliz ano novo, de 1975, que ele se fez notar.
O livro foi proibido durante a ditadura por ser considerado “contrário à moral e aos bons costumes”. “Fomos censurados e proibidos juntos em 1976”, lembra Ignácio de Loyola Brandão, que teve o romance Zero vetado na mesma ocasião. “A partir da censura de nossos livros — Feliz Ano Novo, Zero e do Araceli meu amor, do José Louzeiro — aconteceu o primeiro grande manifesto contra a censura em 1977, assinado por diversos intelectuais.” O manifesto foi organizado por Lygia Fagundes Telles, Hélio Silva, Nélida Piñon e Jefferson Ribeiro de Andrade e dirigido ao então presidente Ernesto Geisel
Com os contos, Fonseca ganhou lugar, ao lado de Dalton Trevisan, como reinventor da literatura brasileira. “Foi um contista importante, de alguma forma renovou a narrativa breve”, aponta Milton Hatoum, autor de Dois irmãos. “Os contos me impressionaram não apenas pela forma, mas também pela violência que ele tratava, a violência urbana. Tinha muito a ver com o clima da ditadura. Acho que tem esse casamento da forma breve com uma linguagem prosaica e sem rebuscamento, tudo ligado ao tema da violência num país que sempre foi violento, não só durante a ditadura”, diz Hatoum.
A forma breve e nada rebuscada da escrita de Fonseca pulou dos contos para os romances e nesse estilo está boa parte da magia da escrita do autor. O caso Morel foi o primeiro, seguido de A grande arte, protagonizado pelo advogado Mandrake, personagem que mergulha com gosto no submundo para investigar um assassinato.
Gerações
Ser um escritor com mais de cinco décadas de carreira tem muitas consequências, mas talvez a maior delas seja o fato de ter influenciado diversas gerações de leitores e autores. Praticamente todas, desde os anos 1960. “Foi extremamente importante para uma geração de escritores que começou a escrever influenciada nas obras dele”, conta Michel Laub. “São obras que não envelhecem”, garante.
O Titã Tony Bellotto, autor de romances policiais, como Bellini e a esfinge, também tem Fonseca como uma referência. “Ele inaugura a literatura urbana no Brasil e deixa um legado monumental. Feliz ano novo foi como uma revelação; era diferente de tudo o que eu lia na escola”, diz.
Cerca de 10 anos mais novo que Fonseca, Ignácio de Loyola Brandão tem boas histórias dessa amizade. Eles viajaram juntos algumas vezes para participar de eventos literários. Em Israel, durante um desses encontros, Fonseca foi encarregado de falar pelo grupo e de plantar uma árvore. “Ninguém sabe, mas sempre fui um dendrólatra”, teria dito, na fala da cerimônia. Ninguém sabia o significado da palavra, utilizada para qualificar amantes de árvores e da natureza. “Rubem mostrou que se podia escrever literatura policial neste país”, diz Loyola. “Seus personagens são pessoas que conhecemos, que vemos na rua, nos escritórios, são amigos nossos. Sabia, há algum tempo, que ele não estava bem. Lá se foi um amigo de mais de 50 anos”, concluiu.
*Colaborou Vinicius Veloso, estagiário sob supervisão de Igor Silveira
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