Diversão e Arte

Estandarte da liberdade e do amor, legado de Aldir Blanc será eterno

Cantor, compositor e escritor, Aldir Blanc morreu na madrugada de ontem (4/5), pelas complicações do coronavírus

Correio Braziliense
postado em 05/05/2020 09:33

Aldir Blanc: talento multiplicado, por décadas

O pensamento brasileiro perde uma grande referência nome, Aldir Blanc. Nome por trás de clássicos da cultura do país, o compositor morreu aos 73 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de complicações geradas pela Covid-19. O velório e enterro do artista não serão abertos ao público, devido às medidas de distanciamento social. 

 

Internado desde o dia 10 do mês passado, Blanc só recebeu o positivo para o novo coronavírus no dia 23 do mesmo mês. Preliminarmente, o artista tratava de um quadro de infecção generalizada iniciado no sistema urinário que acarretou em uma pneumonia. Alguns exames de imagem levantaram suspeita da Covid-19 que acabou sendo confirmada.

 

Saiba Mais

 

 

Antes de receber a certeza de que estava infectado com o coronavírus, o compositor teve muita dificuldade de conseguir um leito. A filha, Isabel Blanc, fez uma campanha on-line para que fosse levado a uma UTI transferido. O músico chegou a ser transferido de hospital para conseguir espaço em uma ala de tratamento intensivo. Mesmo com todo o esforço, Aldir Blanc não resistiu e morreu na madrugada de ontem. O artista deixa um vasto legado de mais de 600 composições, interpretadas por grandes vozes da música popular brasileira.

 
Carreira

 

Em entrevista ao Correio em 2010, Blanc afirmou que a composição era a ação que mais o dava prazer. “Fazer letra, sem dúvida. Tenho orgulho de acalentar uma fantasia: morrer feito o Noel Rosa, estendendo a mão para a última letra”. Mesmo com toda a paixão, o sonho de ser artista quase ficou em segundo plano quando o artista ingressou na Faculdade de Medicina, em 1966, para se especializar em psiquiatria. Mas, durante a própria faculdade, as composições desse orgulhoso suburbano carioca chamavam atenção e eram classificadas para festivais universitários, até que, em 1973, decidiu se dedicar apenas ao universo musical, abandonando o curso de medicina.

 

O grande parceiro de Blanc na música foi o cantor e violinista João Bosco, com quem criou vários clássicos para a MPB. Entre as composições estão Bala a bala, O mestre-sala dos mares, De frente pro crime e Caça à raposa.

A dupla compôs o clássico O bêbado e a equilibrista, interpretada por Elis Regina no álbum Essa mulher, lançado em junho de 1979. A canção se tornou um sucesso durante a luta pela da anistia, durante o declínio da ditadura militar no Brasil, sendo chamada de Hino da Anistia, ainda que tenha sido composta antes da aprovação da Lei da Anistia, em agosto de 1979.

 

“As músicas mais importantes para mim foram O bêbado e a equilibrista, por ter virado espontaneamente o Hino da Anistia, e O mestre-sala dos mares, por fazer justiça a João Cândido, uma das maiores figuras de nossa história”, revelou ele aos jornalistas Irlam Rocha Lima e José Carlos Vieira.

 

A letra de O bêbado e a equilibrista possui diversas referências de eventos e personalidades ligadas ao período da ditadura e se tornou referência contra o regime totalitário no Brasil. Nos versos “Choram Marias e Clarisses”, por exemplo, Blanc cita as viúvas Maria, mulher de Manuel Fiel Filho; e Clarisse Herzog, esposa de Vladimir Herzog, ambos morreram nos porões da ditadura. 

 

As façanhas de Aldir Blanc não se restringiram apenas ao mundo da música. Na literatura, o artista publicou mais de 10 livros, entre eles: Vila Isabel, inventário da infância (2017); Heranças do samba (2004); Uma caixinha de surpresas (2010); Rua dos artistas e transversais (2006); Direto do balcão (2017); e Porta de tinturaria (2017). 

 

Em 1993, fez um retrato bem-humorado e crítico do cidadão brasileiro da época, no livro Brasil passado a sujo: a trajetória de uma porrada de farsantes. Na obra, revela-se como contista, cronista e poeta, focando em personagens comuns do Rio de Janeiro, mas também da conturbada cena nacional. O autor publicou ainda um compilado de crônicas que escreveu para o jornal O Pasquim, no livro Rua dos Artistas e arredores.

 
Repercussão

 

A morte do compositor comoveu grandes artistas brasileiros. Nas redes sociais, o amigo e parceiro de arte de Aldir, João Bosco publicou um pronunciamento, no qual afirma que cantará as músicas do compositor até “onde tiver forças”. “Aldir foi mais do que um amigo pra mim. Ele se confunde com a minha própria vida. A cada show, cada canção, em cada cidade, era ele que falava em mim. Ele com aquele humor divino. Sempre apaixonado pelos netos. Ele médico, eu hipocondríaco. Fomos amigos novos e antigos. Mas, sobretudo, eternos”.

 

João Bosco completa o pronunciamento dizendo que perdeu seu maior amigo, mas que ganhou uma razão para viver. “Não existe João sem Aldir. Felizmente nossas canções estão aí para nos (fazer) sobreviver. E como sempre, ele falará em mim, estará vivo em mim, a cada vez que eu cantá-las. Hoje é um dos dias mais difíceis da minha vida. Meu coração está com Mari, companheira de Aldir, com seus filhos e netos. Perco o maior amigo, mas ganho, nesse mar de tristeza, uma razão pra viver: quero cantar nossas canções até onde eu tiver forças. Uma pessoa só morre quando morre a testemunha. E eu estou aqui pra fazer o espírito do Aldir viver. Eu e todos os brasileiros e brasileiras tocados por seu gênio”.

 

Maria Rita, filha de Elis Regina, classificou o compositor como um dos “mestres maiores”. “‘Azar! a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar’. Aldir, dos mestres maiores, que o senhor descanse em luz, com a certeza do tanto que nos deixou de legado, amor, senso crítico, arte, cultura. Missão cumprida! Que farra boa o céu vai presenciar”, disse.

O músico Arnaldo Antunes reverenciou Aldir pelo Twitter. “'Rubras cascatas/Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas'. Quando morre o autor de um verso como esse, entre tantos outros memoráveis, só nos resta chorar e reverenciar. 'Glória a todas as lutas inglórias'. Viva Aldir Blanc!”, publicou.

 

O rapper Emicida também prestou homenagem ao artista: “Aldir Blanc, assim como o sol, saiu de nosso campo de visão normal nessa noite. A poesia acorda triste com a partida de mais uma caneta que nos inspirou a sonhar. Obrigado por nos presentar com um país pelo qual nos apaixonamos Seu Aldir. O maior dos obrigados”, disse.

 

Parcerias geniais

 

 

“...E nuvens lá no mata-borrão do céu/ Chupavam manchas torturadas/ Que sufoco...” Neste trecho da letra de O bêbado e a equilibrista, samba que fez com João Bosco, Aldir Blanc, de forma poética, denunciava as agruras vividas por muitos brasileiros nos sombrios anos de chumbo da ditadura militar.

 

Carioca, nascido no bairro do Estácio, em 2 de setembro de 1946, letrista desde 1968. Em 1970 compôs, em parceria com Sílvio Silva Júnior, Amigo é para essas coisas, que, defendida pelo MPB-4, classificou-se em segundo lugar no 3º Festival Universitário da Música Popular Brasileira. O samba viria a ser o primeiro sucesso de sua longa trajetória artística.

 

Aldir Blanc foi o parceiro mais frequente de João Bosco. A primeira da dupla foi Agnus sei, em 1972, e foi registrada no compacto lançado pela Editora Codecri, do Pasquim, com produção de Sérgio Ricardo. A canção marcou a estreia de João Bosco em disco. Juntos, eles são autores de, algo em torno, de 500 composições, entre as quais clássicos como De frente pro crime; Dois pra lá, dois pra cá; Incompatibilidade de gênios e Linha de passe.

 

Além de João Bosco e Sílvio Silva Júnior, Aldir tem parceria com Guinga, Moacyr Luz e Cristovão Bastos, entre outros. Com Cristovão ele assina a consagrada Resposta ao tempo, que interpretada de forma primorosa por Nana Caymmi, foi tema de abertura da série Hilda Furacão, da TV Globo. “Com Aldir, compus por volta de 80 músicas. Para se ter ideia, Leila Pinheiro gravou um disco inteiro, o Catavento e Girassol, só com músicas nossas. Além de parceiro fomos amigos de longa data”, lembra Guinga, com emoção à flor da pele. “A música brasileira perdeu um dos seus mais exponenciais letristas, que morreu pobre, porque vivia de direitos autorais”, acrescenta.

 

Para Moacyr Luz, Blanc foi “um poeta atento à realidade do país, do Rio de Janeiro, em especial do subúrbio desta cidade tão maltratada por quem a administra”. Com um vocabulário exclusivo e riquíssimo, era como, certa vez disse Dorival Caymmi, “um ourives das palavras”. “Durante muitos anos fomos vizinhos na Tijuca. Ele foi uma das pessoas que mais me incentivaram e me influenciaram a seguir a carreira musical. Somos parceiros em 60 músicas e algumas delas foram gravadas no meu CD mais recente, que focaliza o Samba do Trabalhador, projeto que mantenho no Andaraí, às segundas-feiras. (IRL) 

 

*Estagiários sob a supervisão de José Carlos Vieira

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