Diversão e Arte

Funcionários da Cinemateca reivindicam três meses de salários atrasados

Acervo de imagens, que precisa de refrigeração específica, preocupa por se deteriorar facilmente: Cinemateca abriga a história do cinema nacional

Correio Braziliense
postado em 01/07/2020 13:00
Acervo de imagens, que precisa de refrigeração específica, preocupa por se deteriorar facilmente: Cinemateca abriga a história do cinema nacional
Maior espaço de registro de imagens, filmes e arquivos audiovisuais do Brasil, a Cinemateca Brasileira passa por dificuldades financeiras e estruturais. A crise no local ficou ainda mais evidente no último sábado (27/6), quando houve queda de energia pela manhã no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, onde está localizada a Cinemateca. O gerador que garantiria o funcionamento ininterrupto das câmaras climatizadas, onde se encontra todo o acervo de filmes, não funcionou. Ainda pela manhã, a luz voltou, mas o alerta para um acidente de graves proporções foi dado.

Os problemas do local não se restringem apenas a energia. Os funcionários da Cinemateca Brasileira, contratados pela Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp), entidade atualmente responsável pela gestão administrativa da instituição e também da TV Escola, no Rio de Janeiro e Brasília, estão desde abril sem receber os salários e notas de prestação de serviços atrasadas, e desde março sem os benefícios essenciais como vales refeição e alimentação. Não há, inclusive, dinheiro para a rescisão dos trabalhadores, tampouco houve o recolhimento do FGTS dos trabalhadores desde de março deste ano, de acordo com os organizadores do movimento Cinemateca Brasileira - Trabalhadores em Emergência.

Para entender melhor o que levou a tamanha crise, é necessário voltar um pouco no tempo.  A organização social Acerp, vinculada ao Ministério da Educação para a gestão da TV Escola, ganhou a licitação para gerir a Cinemateca Brasileira, assinando, em 06 de março de 2018, um termo aditivo ao Contrato de Gestão da emissora, que envolveu também o hoje extinto Ministério da Cultura.

O contrato, vigente até 2021, transferiu para a Acerp a gestão integral dos núcleos de Preservação, Documentação e Pesquisa, Difusão, Administração e Tecnologia da Informação da Cinemateca. Mas, em 13 de dezembro de 2019, o então ministro da educação Abraham Weintraub ordenou despejo da TV Escola das dependências do MEC, após o governo Jair Bolsonaro decidir não renovar o contrato com a associação. Procurada pelo Correio, a Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto não se pronunciou sobre o caso até a publicação desta reportagem.

Saiba Mais

Com o vínculo da Acerp para gerir a TV Escola encerrado bruscamente, o termo aditivo da Cinemateca Brasileira também deixou de valer. Esse imbróglio político e jurídico afetou radicalmente os trabalhadores da TV Escola e da Cinemateca Brasileira. 

“Desde então, a Cinemateca não vem recebendo nenhum aporte de recursos. É verdade que em 2019, ela recebeu metade dos valores previstos para o funcionamento essencial, não ideal, essencial. De R$ 13 milhões, recebeu R$ 7 milhões. A Acerp chegou a alegar que usou recursos próprios para completar o que faltava, mas com rompimento do contrato, o governo não quer pagar os recursos colocados pela organização, o que criou um impasse. Hoje a Cinemateca está abandonada pelo poder público. Essa semana faltou luz e o gerador não está funcionando. Foi feito o orçamento do conserto desse gerador que era de R$ 4 mil e enviado para Acerp mas nada aconteceu”, detalha Roberto Gervitz, representante da Associação Paulista de Cineastas (Apaci) e um dos organizadores do protesto SOS Cinemateca, em entrevista ao Correio.

Toda essa crise ameaça o maior acervo de imagens da América Latina e o terceiro maior do mundo. Na Cinemateca, é possível encontrar cerca 250 mil filmes e mais de um milhão de documentos relacionados ao cinema. Filmes amadores desde o final do séc. XIX, até hoje, o departamento de imprensa e propaganda do ex-presidente Getúlio Vargas, arquivo da extinta TV Tupi, com quase 50 anos de história, as imagens do Canal 100 de futebol estão no local. Há também os registros das fases do cinema, como o Cinema Novo, o ciclo da Xanxada, o ciclo da Vera Cruz, e filmes realizados nos últimos 30 anos.

O professor do curso de Cinema do Centro Universitário IESB, Érico Monnerat, pontua que o espaço tem material fundamental para contar a história do país. “A Cinemateca tem um acervo fundamental para pesquisadores e realizadores de audiovisual. Quase todos os documentários que utilizam imagens de arquivo usam a Cinemateca como uma das fontes. Ela guarda o acervo de nomes importantes como Glauber Rocha, Thomaz Farkas e Paulo Emílio Sales Gomes e também da TV. Além de restaurar e manter material que requer cuidados especiais como os filmes antigos que são inflamáveis. Sem esse acervo será muito difícil contar a história do Brasil com imagens em movimento”, esclarece.

Os negativos dessas imagens precisam de refrigeração específica por conta do material em que são feitos. Há dois tipos de negativos: de nitrato de celulose, materiais de filmes mais antigos, até 1940, e os de acetato de celulose, material dos filmes mais contemporâneos. “Nos que são feitos de nitrato, basta um descuido que eles entram em autocombustão. Já houve incêndio na Cinemateca em 2016 e se perdeu uma parte importante do acervo”, explica Roberto. Já os feitos em acetato, o risco que se corre é de mofar: “os negativos desses filmes ficam guardados em câmaras climatizadas, onde há um estrito controle da temperatura e umidade. Se a eletricidade é cortada, por exemplo, em menos de 24 horas, você cria uma condensação que penetra dentro das latas de filme, causando destruição. Ficam todos mofados e se perde tudo”, completa o cineasta.

Os trabalhadores da Cinemateca defendem que o descaso pode prejudicar o acervo. “Há funcionários que ainda monitoram as condições de umidade e temperatura em todas as circunstâncias, e alguns estão presencialmente certificando que o equipamento de refrigeração continue funcionando. No entanto, o acervo precisa de mais. Para manter segura a coleção de nitrato de celulose, todos os rolos devem ser tirados de suas embalagens uma vez por ano e revisados para evitar o acúmulo de gases emitidos. Esse trabalho de revisão é crucial para evitar episódios de autocombustão”.

Roberto Gervitz ressalta que o processo de autocombustão e a falta de energia vão se tornar preocupações maiores ainda na próxima semana. “Não é só o problema de que faltou luz. Nesta semana se encerra o contrato da Brigada de Incêndio da Cinemateca, ou seja, os bombeiros que trabalham lá vão sair. No dia 15 de julho está previsto o encerramento da vigilância da cinemateca. É uma precariedade absurda. É um tesouro incomensurável, não dá nem para medir o que está em risco nesse momento. É um pedaço de quem somos e um museu que revela nossas identidades a longo do tempo. Qualquer país que tem senso da importância cultural, estaria muito preocupado com o que está acontecendo lá dentro”, enfatiza.


Sinais paulistas



Na semana passada, o prefeito Bruno Covas (PSDB) conversou com Luiz Eduardo Ramos, da ministro-chefe da Secretaria de Governo, para tentar assumir a gestão do espaço. A ideia chegou até a prefeitura por meio do vereador Xexéu Tripoli (PSDB). “A Prefeitura de São Paulo tem todas as condições de manter e preservar esse acervo. Quando propus a ideia ao Bruno Covas ele já entendia do assunto e após discutir com o secretário municipal de cultura Hugo Possolo e com a Laís Bodanzky, da Spcine, tomou a decisão de buscar municipalização da Cinemateca”, conta Xexéu.

A tentativa de ajudar o local é vista com bons olhos pela SOS Cinemateca, apesar da municipalização ser uma preocupação. “A Cinemateca é brasileira, e estamos em um período eleitoral em São Paulo, não sabemos nem se vai ser ele o prefeito. A prefeitura tem muito menos recursos para manter a cinemateca do que o Governo Federal. O que a prefeitura propôs, e foi muito bem visto por todos, foi ajudar nesse período de emergência. Eventualmente, em uma estrutura futura, a Cinemateca poderia ser Federal com aportes tanto do município quanto do estado, que seria melhor dos cenários. Mas, municipalização da Cinemateca levaria meses, o que não podemos esperar”, refuta Roberto.

Segundo o vereador, seria preciso, inclusive, a ajuda do setor privado. “A crise deve ser enfrentada por todos do setor cultural, com o Executivo e o Legislativo Municipal. Eu já propus uma emenda parlamentar de R$ 1 milhão para começarmos a salvá-la. Mas vamos precisar de muito esforço, inclusive  do setor privado. É preciso resgatar a Cinemateca do estado de abandono em que se encontra e começar um trabalho para que possamos revitalizar e melhorar as suas instalações, para que fiquem acessíveis a toda a população”, diz.


Visita do ministro


Em 22 de junho, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, acompanhado do secretário Especial da Cultura, Mário Frias, visitou as instalações da Cinemateca Brasileira. Álvaro Antônio se reuniu com membros da Acerp, com objetivo de discutir possibilidades para a solução dos impasses do local.

Durante a visita, o ministro destacou que deseja resolver o imbróglio da Cinemateca. Procurada pelo Correio, a assessoria de imprensa do Ministério do Turismo respondeu em nota. “O Ministério do Turismo esclarece que segue trabalhando para alinhar as ações e definir, dentro das competências institucionais, a forma ideal para reincorporação da Cinemateca à União”.


Vaquinha dos funcionários


Os trabalhadores da Cinemateca Brasileira abriram campanha de arrecadação on-line de fundos para situação emergencial. De acordo com os organizadores, a vaquinha tem como meta R$ 200 mil e pretende ajudar 62 funcionários. As doações ocorrem, até 4 de julho, no site da instituição. 

“O trabalho para alguns de nós tem sido especialmente desgastante. Muitos funcionários estão buscando outros trabalhos para assegurar alguma fonte de renda. Outros também estão trabalhando na mobilização e na campanha de doações. Fica muito difícil nessa situação reunir forças para fazer tudo isso, especialmente durante a pandemia, e ainda se concentrar em realizar um trabalho que não está sendo pago e não tem perspectiva de ser”, relatam os trabalhadores.


*Estagiário sob a supervisão de Nahima Maciel





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