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Cortes do MEC afetam estudos contra câncer, dengue e leishmaniose

Conheça vítimas na UFMG. ICB tem a cada laboratório um pesquisador ou trabalho de ponta ameaçado pelo bloqueio anunciado pelo MEC

Junia Oliveira/Estado de Minas
postado em 13/05/2019 08:40
Estrutura e materiais do ICB vem sofrendo com falta de investimentos e atividades estão severamente ameaçadas caso não haja reversão do anúncio de corte de 30% nas universidadesQuem passa pelo prédio da via estreita, mais afastado da efervescência da avenida principal em frente à Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), não imagina o que há por trás daquela entrada aparentemente comum. São 5 mil metros quadrados de trabalho nas mais relevantes áreas da saúde e de meio ambiente, entre outras. Não por acaso, o Instituto de Ciências Biológicas (ICB), um dos principais centros de ensino, pesquisa e extensão do país, faz quase 25% de toda pesquisa produzida na UFMG.
Por isso, o bloqueio de 30% de recursos anunciado pelo Ministério da Educação (MEC) no orçamento de manutenção e investimento para instituições federais de ensino cai como uma bomba em laboratórios e salas de aula da unidade, com efeitos que a curtíssimo prazo pode levá-la a assistir à sua excelência ficar no limiar da dissolução. No ICB, celeiro de ensino de qualidade, patentes e descobertas, o Estado de Minas mostra que, muito mais que números, os efeitos dos cortes do MEC têm rostos, histórias de vidas, sonhos e dedicação.

De cara, o que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, chama de contingenciamento enterrou definitivamente as esperanças de renovação geral do ICB. O projeto estimado entre R$ 70 milhões a R$ 100 milhões foi engavetado. Nem melhorias pontuais, que pingavam a conta-gotas nos últimos anos, são mais esperadas. E o prédio, cuja estrutura e materiais se degradam com o passar das décadas, está ameaçado de ter atividades interrompidas de vez, se reitores de todo o país não conseguirem, nesta semana, mudar a decisão do MEC, em reunião com o chefe da pasta, marcada em Brasília.

Uma sombra que se ergue sobre as carreiras de 4,6 mil alunos de graduação e mais de 1,2 mil estudantes de mestrado e doutorado, cujo futuro passou a ser incerto, além de um sem número de professores, pesquisadores e servidores. O ICB tem 12 programas de pós-graduação e dois mestrados profissionais consolidados, abrangendo diferentes subáreas da biologia. Depois de apertos financeiros que somam pelo menos cinco anos, agora se chegou ao nível do estrangulamento. Acabaram-se até mesmo os dias de apelar para o colega da sala ao lado e pegar emprestada verba a insumos para seguir com os trabalhos. Com as reservas raspadas, ninguém tem mais nada em caixa. Laboratórios que deveriam estar cheios de equipamentos se encontram vazios. Em outros, professores dividem a sala para tentar prosseguir com a produção.

Teto caindo

No centro da edificação há laboratórios que foram todos reformados e equipados com maquinário moderno. Nas periferias, salas que precisam de revitalização urgente e também de insumos básicos têm problemas de umidade. Tetos que parecem prestes a cair oferecem para o trabalho do dia a dia máquinas com 30, 50 anos de idade. Em corredores escuros, freezers quebrados aguardam destinação.

Em um dos laboratórios da unidade, onde ocorrem pesquisas sobre esquistossomose que avaliam o ciclo do caramujo e do rato há 26 anos ininterruptos, está o auxiliar de agropecuária José Carlos Reis dos Santos, de 52 anos, servidor por mais de duas décadas e meia. Dos cinco funcionários, sobrou só ele. A lupa que usa está remendada por esparadrapos. Os nichos onde estão caramujos hospedeiros do Schistomosa mansoni, feitos de madeira, são os mesmos de décadas atrás.
Conheça vítimas na UFMG. ICB tem a cada laboratório um pesquisador ou trabalho de ponta ameaçado pelo bloqueio anunciado pelo MEC
;Não tem mais nada para cortar. Falta o básico para trabalhar: luva, máscara, óculos, ou seja, equipamentos de proteção individual. Por isso, a cada seis meses preciso fazer exame de xistose, para saber se estou contaminado. E tenho que fazer por minha conta. Para piorar, o pagamento de adicional de insalubridade está suspenso. Deve ser cortado. Tenho o benefício há 25 anos e poderia ter aposentadoria especial. O técnico que fez a avaliação disse que não pode ser cortado, pois trabalho com caramujos infectados por Schistosoma. Mas está suspenso. Eu trabalhava no biotério. A técnica daqui saiu, agora, faço os dois serviços, criando e infectando caramujos, entre outras funções;
José Carlos Reis dos Santos, auxiliar de agropecuária e servidor do ICB há mais de 20 anos


;Desse trabalho do José dependem várias teses. É uma cepa isolada há 60 anos, um patrimônio da universidade;, alerta o professor Vasco Ariston de Carvalho Azevedo, chefe do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da UFMG e do laboratório de Genética Celular e Molecular. Ele conta que seu departamento tem dinheiro somente até o fim do ano. Um dos maiores impactos pode recair sobre o biotério: o criadouro de animais para pesquisa pode parar. E, parando, será preciso sacrificar animais. Persistindo o bloqueio, ele prevê grande evasão de alunos. Para o integrante da Academia Brasileira de Ciência e comendador da Ordem do Mérito Científico do Ministério da Ciência e Tecnologia, doutor em genética e bioinformática, é duro ver os rumos que o país anuncia.
;Vivemos uma situação mambembe. Emocionalmente, tem pessoas aqui dentro (do ICB) já ;chutando o pau da barraca;. Não estão mais pegando alunos para orientar. Professores novos que chegaram não terão dinheiro. Pode ter o currículo que for. Aí, ele vai embora da universidade ou desiste. O professor tem que viajar para o exterior, se atualizar, levar o que estamos fazendo aqui. O laboratório de esquistossomose já foi o centro de referência da doença. O Exército norte-americano dava dinheiro, por causa de seus militares em campo. Vamos perder nossos estudantes para São Paulo ou para o exterior. Continuaremos com uma desigualdade regional grande. São Paulo é o único estado com dinheiro, por causa da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp). Lá, o estado respeita a lei que prevê 1% do orçamento para pesquisa. Minas cumpre no fim do ano e, em 1; de janeiro, tira o recurso do caixa;
Vasco Ariston de Carvalho Azevedo, chefe do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da
UFMG e do laboratório de Genética Celular e Molecular

O laboratório de Genética Celular e Molecular do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) deveria ter excelência garantida não apenas pelos trabalhos de alunos e professores, mas também pela estrutura física. Mas basta uma conversa rápida para, em pouco tempo, se inteirar dos problemas. O professor Vasco Azevedo, chefe do laboratório, cita o trabalho de colaboração com a França e a quantidade de equipamentos de alto custo quebrados e, logo, parados. Apenas para consertar uma centrífuga e dar a ela vida útil de mais uns cinco anos, o instituto precisa de R$ 18 mil. Cinquenta pessoas trabalham no laboratório, que conta também com filtros que precisam de cuidados especiais. ;Água é tudo para a gente. Se não tivermos água de boa qualidade, perdemos tudo;, diz.

Na entrada do laboratório, avistamos o doutorando Luís Cláudio Lima, de 28 anos. Natural de Serrano, no interior do Maranhão, ele passou em segundo lugar para o doutorado de genética e, agora, se prepara para fazer uma parte do curso na França, no Instituto Agronômico de Rennes. Mas a conclusão da pós-graduação está ameaçada pelo corte de 30% anunciado pelo Ministério da Educação (MEC), o mesmo que o faz temer ficar sem a bolsa. ;Tenho uma responsabilidade social com esses alunos. Temos uma assimetria de doutores em relação ao Nordeste do país. Imagina interromper o sonho de uma pessoa dessa?;, afirma o professor Vasco Azevedo.

A vida em jogo: ;Entrei na UFMG em julho de 2016, quando fiz o mestrado. Entrei no doutorado em 2018, e minha bolsa vai até 2022. Hoje, tenho medo de perdê-la. Para as pessoas que vêm de outro lugar, a forma de se manter em Belo Horizonte é por meio da bolsa. Quando fiz graduação, morei em república, em São Luís (MA). Minha família não tem condições de bancar meus estudos. Minha pesquisa consiste em caracterizar o efeito anti-inflamatório de uma bactéria que veio da Argentina, contra os danos inflamatórios intestinais de um fármaco usado no tratamento de câncer. A vontade de ser pesquisador foi despertada ainda na graduação. Todo mundo aqui pensa em fazer um pós-doutorado e ser professor universitário. É minha vida em jogo.;
Luís Cláudio Lima, doutorando em genética pelo ICB

Alternativas

O Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG trabalha uma diversidade de temas que o tornam referência em ciências médicas e na parte ambiental. Leishmaniose, dengue e zika estão no rol das pesquisas. Lá, uma porta chama a atenção. O professor Vasco Azevedo faz questão de entrar. ;Aqui tem um geniozinho;, avisa. É uma referência ao pesquisador Gustavo Menezes, professor do Departamento de Morfologia e chefe do Centro de Biologia Gastrointestinal. Em seu laboratório, ele tem milhões de reais em equipamentos.

Diante da situação cada vez mais crítica da universidade, Menezes optou por arregaçar as mangas e procurar outras fontes de financiamento, para não interromper seus trabalhos nem os sonhos de seus alunos. Fechou parceria com o setor privado para fazer para empresas testes em troca de reagentes e promove eventos nos quais as marcas das companhias aparecem em troca de doação de insumos e equipamentos. Em seu espaço, o único centro de excelência da Nikon do Sul no mundo, são estudadas doenças hepáticas e o desenvolvimento de recém-nascidos. ;Se a ideia é mudar para o financiamento privado, tem que ter planejamento estratégico. Não se pode cortar assim. Duvido que haja uma pessoa que, se bem informada sobre o que é ciência, não a valorize;, afirma Menezes.

Produzir ou comprar: ;Trabalho com temas que têm impacto direto em todos os países do mundo. Sem recursos, outros países que não tiveram a ideia rápido como eu vão publicar na minha frente, por causa da velocidade de execução que terão. Estou vivendo um delírio de que não existe crise e fazendo parcerias. Há cinco anos estou tentando reagir. Isso me atrasa um pouco, mas me prepara para uma realidade que parece irreversível. A pesquisa no Brasil é extremamente dependente do financiamento público. Pesquisa, enquanto investimento, é algo novo, tem apenas 80 anos. O primeiro mestre se formou há 50. Não temos mecanismos para pôr a iniciativa privada para resolver o corte governamental. Pode ser que no futuro sejamos mais dependentes do capital privado, mas leva anos. Tem gente indo para a rua (protestar contra os cortes), outros postando na internet e tem quem busque alternativas. Nenhuma ação é mais importante que a outra e todas são válidas. A Alemanha anunciou 2 bilhões de euros para a pesquisa até 2030 esta semana. Vender commoditie, boi e farinha não vai pôr o país na ponta. Em 2030, o Brasil estará tentando, talvez, se recuperar, enquanto a Alemanha estará muito na frente. Uma hora a conta vai vir. Se não produzir tecnologia agora, vai ter que comprar.;
Gustavo Menezes, professor do Departamento de Mrofologia e chefe do Centro de Biologia Gastrointestinal

Adiamentos e cortes que se multiplicam

A caminhada pelo ICB continua. As dificuldades, também. Na área chamada P3, de laboratórios que exigem nível de segurança ainda maior, há portas fechadas por falta de insumos e equipamentos adequados. No andar de baixo, em outro laboratório de genética celular e molecular de responsabilidade do professor Vasco Azevedo, o aluno Wylerson Guimarães Nogueira, de 26 anos, que veio de Belém (PA) para fazer mestrado em bioinformática, é mais uma vítima do arrocho orçamentário na educação. Desde agosto ele estuda sem bolsa e o novo corte anunciado pelo MEC enterrou de vez a possibilidade do benefício. Em julho, ele faz as malas de volta para casa sem ter terminado o que começou.
Sobreviver no limite: ;Recebi o resultado da seleção em meados de julho, para início das aulas em agosto do ano passado. Havia 15 vagas, mas só sete pessoas foram aprovadas. Passei em sexto. Não sabia se ficaria, pois não haveria bolsa. Meu orientador no Pará conseguiu uma bolsa de projeto para três meses e é com esse dinheiro que vivo até hoje. Naquela época, informaram que só voltaria a ter bolsa em fevereiro ou março deste ano. Mas houve mudança de prioridade: as bolsas só seriam concedidas aos aprovados em primeiro lugar nos processos de seleção seguintes. Assim, a data para minha bolsa mudou para julho. Eu me programei para isso, mas, agora, houve nova mudança de prioridade e a bolsa ficou para fevereiro de 2020. Já não adianta mais nada, pois defendo a dissertação no fim do ano. Meus pais me ajudam no aluguel e com as contas fixas, mas não tem sido fácil. Fico no limite. Sabendo que essa situação era possível, me esforcei para cumprir todas as obrigações presenciais. Só preciso defender e participar de uma apresentação obrigatória de seminário. Escolhi vir para cá não só pelo programa, mas pelo networking, o ambiente de trabalho e pesquisa. Mas terei de voltar em julho. Não tenho condições de ficar.;
Wylerson Guimarães Nogueira, mestrando em bioinformática

Corda bamba

Assim como pesquisas, laboratórios e projetos de estudantes e professores, os funcionários terceirizados estão na corda bamba caso o bloqueio orçamentário das universidades se mantenha. A própria Reitoria da UFMG já anunciou que, além de não conseguir pagar contas de consumo, não conseguirá também honrar contratos de prestação de serviço. A notícia é uma volta a um passado triste e recente para um funcionário que pediu para não ser identificado, por não ter autorização da empresa prestadora para dar entrevista. O ano era 2016 e as universidades enfrentavam mais um corte em suas finanças, depois de uma queda de recursos de 33% no ano anterior. Os rumos que 2019 desenha não são muito diferentes.

;Arrebenta pra gente; - Servidor terceirizado

;A empresa perdeu o contrato numa universidade privada e veio para cá. Em julho, saiu a notícia das demissões. Todo mundo assinou aviso prévio. Entre os porteiros, dos 80, ficaram quatro. Agora, é a volta da insegurança. Há boatos de que vão cortar novamente e tudo arrebenta para o lado da gente. No CAD 3 (Centro de Atividades Didáticas), só três faxineiras têm de dar conta do prédio daquele tamanho. O Icex (Instituto de Ciências Exatas) também cortou. Sou casado e tenho um filho de 9 anos. Minha mulher trabalha, mas não é com carteira assinada. Todo mundo tem seus sonhos, mas não pode correr atrás deles, porque a qualquer momento pode ser mandado embora. Não tenho mais internet e diminuí a compra de supermercado. Ia trocar o carro, ano 2000, por um mais novo. Agora não tenho coragem. O corte é inevitável. Nosso contrato vai até 2021 e podemos ser mandados embora da terceirizada a partir do ano que vem. Mas, se precisar, ela corta assim mesmo. Estava achando que tudo ia melhorar. Parece que está pior.;

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