Rodrigo Craveiro - Enviado Especial
postado em 31/03/2019 06:00
Rabat (Marrocos) - O simbolismo de união entre as religiões católica e muçulmana esteva presente no cortejo do aeroporto de Rabat-Salé até a esplanada da Torre Hassan, ícone de Rabat. Sob uma chuva insistente, o papamóvel que conduzia Francisco e a limusine com teto solar aberto levando o rei Mohammed VI percorreram parte do trajeto lado a lado, em duas pistas. Ao longo do caminho, muçulmanos acenavam para ambos. Francisco chegou à esplanada da torre por volta das 14h30 (10h30 em Brasília), foi saudado por um imã e homenageado com uma salva de 21 tiros de canhão. Depois, recebeu os cumprimentos de clérigos islâmicos e de militares. Os pronunciamentos do pontífice e do monarca seguiram linhas em comum: o diálogo inter-religioso, a migração e o terrorismo. Francisco começou e encerrou o discurso com saudações em árabe (As-Salam Alaikum, ou "Que a paz estreja sobre vós", e Shukran bi-saf, "Muito obrigado"), outro sinal de aproximação. Foi aplaudido e ovacionado pela multidão.
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Ao dirigir as palavras ao povo do Marrocos, ao rei Mohammed XVI e ao corpo diplomático, diante da Torre Hassan, Francisco disse que sua visita representa "a grande oportunidade de promover o diálogo inter-religioso e o conhecimento mútuo entre os fiéis" das duas religiões. "Ao mesmo tempo, recordamos, 800 anos depois, o histórico encontro entre São Francisco de Assis e o sultão Al-Malik Al-Kamil. Este profético evento demonstra que a coragem do encontro e da mão estendida é um caminho de paz e harmonia para a humanidade nas situações onde o extremismo e o ódio são fatores de divisão e destruição", declarou. Ele afirmou ser "indispensável" contrapor ao fanatismo e ao fundamentalismo a solidariedade de todos os crentes. De acordo com Francisco, "a liberdade de consciência e a liberdade religiosa estão inseparavelmente ligadas à dignidade humana".
O líder católico acrescentou que "a construção de pontes entre os seres humanos, vista da perspectiva do diálogo inter-religioso de vista, pede para ser vivida sob o signo da convivência, da amizade e, mais ainda, da fraternidade". Francisco destacou, nesse sentido, a criação do Instituto Ecumênico Al-Mowafaqaa, em Rabat, sete anos atrás, para a promoção do ecumenismo e do diálogo com a cultura e com o islã.
Por sua vez, o rei Mohammed VI afirmou que "o Reino do Marrocos jamais deixou de proclamar, ensinar e viver diariamente a irmandade dos filhos de Abraão". "Nós, rei do Marrocos, emir dos crentes, de todos os crentes, somos o garante do livre exercício dos cultos", comentou, ao assegurar que protege os judeus marroquinos e os cristãos que vivem em outros países. Ele reconheceu que o diálogo entre as religiões descendentes de Abraão é "claramente insuficiente". Segundo Mohammed VI, o islamismo, o cristianismo e o judaísmo "não existem para se tolerar, por resignação fatalista ou por aceitação altiva; existem para abrir-se e conhecer-se". Em seu discurso, o monarca frisou que "os terroristas não têm em comum a religião, mas a ignorância da religião". "Já é hora de a religião deixar de ser um álibi para a ignorância e a intolerância", comentou. Após os discursos, Francisco depositou uma coroa de flores dentro do Mausoléu Real, onde estão sepultados os reis Mohammed V e Hassan II, e assinou o livro de convidados.
Filha de marroquino e de brasileira, Camila Messari, 20 anos, foi acompanhada de um grupo de amigos prestigiar o papa, apesar de muçulmana. "Foi interessante, um discurso sobre a coexistência entre todas as religiões do Marrocos. Era o que eu esperava", contou ao Correio. "A vinda de Francisco é um bom gesto político para mostrar que o Marrocos aceita outras religiões; por isso, foi importante." Também muçulmana, a marroquina Kansa Sophien, 22, revelou à reportagem que esperava pela visita do papa "havia muito tempo". "Minha impressão foi muito boa. O discurso dele foi um recado de que a mistura de fés pode criar a paz e um mundo solidário", disse.
O próximo compromisso foi uma visita ao Instituto Mohammed VI de Formação de Imãs Mourchidine e Mouchidat (em referência a clérigos e pregadores e pregadoras islâmicas). Criada em 2015, a entidade já formou 2.100 imãs e 900 instrutores. Francisco escutou os testemunhos de um casal de estudantes -- uma nigeriana e um francês. Ambos citaram a ameaça representada pelo terrorismo em seus países e como o instituto tem sido importante para a instrução dos muçulmanos, inspirando a moderação e a espiritualidade. Do instituto, ele seguiu para a sede da organização católica Cáritas (leia nesta página), onde se reuniu com migrantes. Hoje, segundo e último dia de visita ao Marrocos, Francisco fará uma visita privada a um centro rural de serviços sociais administrado pelas Irmãs da Caridade de São Vicente de Paulo. Às 10h30 (6h30 em Brasília), se reúne com sacerdotes e representantes de outras denominações cristãs na Catedral de São Pedro de Rabat. Às 14h45, o ponto alto da viagem e o compromisso final: a celebração da missa solene no estádio Príncipe Moulay Abdallah, com a ajuda de um coral composto de 500 pessoas, inclusive imigrantes da África Subaariana.
Jerusalém
Francisco e Mohammed VI manifestaram ontem o reconhecimento à unicidade e à sacralidade de Jerusalém (Al-Qods, para os muçulmanos). "Consideramos importante preservar a Cidade Santa de Jerusalém/Al Qods Acharif como patrimônio comum da humanidade. Para os fiéis das três religiões monoteístas, é acima de tudo, um lugar de encontro e um símbolo de convivência pacífica, onde se cultivam o respeito mútuo e o diálogo. Com este propósito, devem manter-se e promover-se o específico caráter multiconfessional, a dimensão espiritual e a identidade particular de Jerusalém", afirma a nota conjunta, a qual pede plena liberdade de acesso à Cidade Santa para os fiéis das três religiões monoteístas e o direito de todos de exercerem seu próprio culto.
Aceno aos refugiados
O alemão Hannes Stegemann recebeu ontem o visitante mais ilustre da história da Cáritas Rabat. A rotina na pequena e simples sede da instituição mantida pela Igreja Católica, situada na Avenida Al-Alaoyuline, a cerca de 200m da Torre Hassan, começou diferente na manhã de sábado. Quando a reportagem chegou ao local, uma funcionária muçulmana limpava a entrada, enquanto policais faziam o isolamento. O papa Francisco chegou ao prédio pouco depois das 18h10 (14h10 em Brasília) e ouviu o testemunho de Jackson Abena, um ex-migrante camaronense que se tornou colaborador da Cáritas. Pouco depois, quatro estudantes da África subsaariana cantaram em árabe para o pontífice. Ao todo, 60 migrantes participaram do encontro, todos procedentes de diferentes cidades do Marrocos.
Mais cedo, na esplanada da Torre Hassan, Francisco havia sinalizado a preocupação com o tema da migração. "A grave crise migratória, que atualmente enfrentamos, constitui para todos um apelo urgente a procurar os meios concretos para erradicar as causas que forçam tantas pessoas a deixar o seu país, a sua família, acabando muitas vezes marginalizadas e rejeitadas", comentou. Durante o discurso na Cáritas, o líder católico sublinhou que "todos somos chamados a responder aos numerososo desafios colocados pelas migrações contemporâneas, com generosidade, prontidão, sabedoria e clarividência".
De acordo com Francisco, uma cidade se torna desérta e inóspita quando perde a capacidade de compaixão. Ele propôs quatro verbos para a humanidade lidar com os migrantes -- acolher, proteger, promover e integrar. "Não é possível pensar em estratégias de grande alcance, capazes de dar dignidade, limitando-se a ações de assistência ao migrante. Isto é essencial, mas insuficiente. É preciso que vós, migrantes, vos sintais os primeiros protagonistas e gestores em todo este processo", aconselhou. Francisco lembrou que "todo o ser humano tem direito à vida, a ter sonhos e a poder encontrar o seu justo lugar na nossa casa comum". "Toda a pessoa tem direito ao futuro", destacou, ao citar que Jesus Cristo viveu na própria carne a angústia do exílio em sua vida terrena.
A Cáritas mantém três grandes centros no Marrocos -- além de Rabat, em Tangiers e em Casablanca --, que atendeu anualmente a cerca de 8 mil migrantes. Situado no noroeste da África, o país funciona como entreposto para migrantes procedentes de Senegal, Mali, Camarões e Costa do Marfim. Cerca de 50 mil estão abrigados em território marroquino. "Muitos deles creem que as condições econômicas no Marrocos são melhores. Alguns abandonam a ideia de chegar à Espanha por medo de se ferirem nas cercas da fronteira de Melilla", comentou Stegemann. O diretor admitiu que eventualmente ocorrem tensões entre migrantes e a população local, ao citar a violência e o álcool como agravantes.
O diretor acredita que o papa, ao visitar a Cáritas, pretendeu transmitir a mensagem de que os migrantes têm direitos e precisam ser respeitados. "Para nós, é um prazer que ele faça isso aqui no Marrocos. O mais importante é que ele deseja que os migrantes sejam vistos da forma correta, como pessoas que tenham direitos e dignidade. Precisamos tratá-los com respeito. É um reconhecimento de nosso trabalho", acrescentou Stegeman. A Cáritas presta atenção humanitária aos migrantes, com a doação de cobertores e roupas, encaminhamento médico gratuito, assistência a gestantes e liberação de documentos para as crianças, entre outras atividades.
Destaque na imprensa local
Os jornais marroquinos deram cobertura na capa à histórica visita do papa Francisco a Rabat. Na edição de sábado, o diário Al-Bayane estampou as fotos de Francisco e do rei Mohammed VI e trouxe a manchete "O papa Francisco exprime seu reconhecimento à Sua Majestade o Rei". Por sua vez, o L;Opinion trouxe o título "O papa está entre nós". Outro jornal, em árabe, também manchetou a sua edição com a visita do pontífice e publicou as fotos de Francisco e do rei Mohammed VI no alto da capa.
Música para o convidado
No Instituto Mohammed VI, Francisco não escondeu a emoção. Depois de assistir à apresentação de uma orquestra e de três solistas -- um muçulmano, uma judia e uma cristã --, o pontífice se levantou e ficou um tempo estático diante dos músicos. Alguns deles desceram do palco e foram recebidos por Francisco, que estava sentado na primeira filera, ao lado esquerdo da bandeira do Vaticano. A orquestra executou uma peça que misturava músicas das três religiões monoteístas.
Dançando na chuva
Com a chuva que teimava a cair sobre Rabat, o público que compareceu à Torre Hassan se protegeu como pôde. Os assentos das cadeiras em cor dourada foram usadas como proteção sobre a cabeça. O clima instável não foi o bastante para atrapalhar os ânimos dos cristãos e dos muçulmanos. Alguns jovens africanos, homens e mulheres, dançaram e cantaram à espera do papa.
Segurança reforçada
A entrada na esplanada da Torre Hassan teve rigidez na segurança. Até mesmo os jornalistas foram obrigados a entregar os celulares do lado de fora. Por uma questão de protocolo, é proibido o uso do aparelho em eventos que contarem com a presença do rei. Filas se formaram para atravessar os detectores de metal, ao lado de um cavaleiro da Guarda Real. Todas as mochilas e bolsas foram revistadas, manualmente e por um aparelho de raio-X.
Presente real
O rei Mohammed VI, do Marrocos, ofereceu ao papa Francisco um medalhão simbolizando o diálogo inter-religioso. O lado direito da peça traz uma parte do Portão Bab-el-Mansour, a entrada principal da Cidade Imperial de Meknes, construída pelo sultão Moulay Ismail (1672-1727). No lado esquerdo do medalhão, as duas catedrais do Marrocos estão representadas: a Catedral de Nossa Senhora da Assunção, em Tangiers, e a Catedral de São Pedro, em Rabat.
*O repórter viajou a convite da Embaixada do Reino de Marrocos