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Mulheres que não querem ser mães ainda são alvo de preconceito

Essas mulheres ainda lutam contra a pressão da sociedade e pelo direito de terem acesso a métodos contraceptivos mais definitivos, como a laqueadura

Correio Braziliense
postado em 16/02/2020 12:40
Patrícia Marx criou um perfil no Instagram para levar informação a mulheres que, como ela, desejavam fazer a laqueaduraA possibilidade de fazer escolhas pessoais parece óbvia — o bom e velho livre-arbítrio. Mas em se tratando da reprodução feminina, muitas mulheres reclamam de encontrar diversas pressões sociais e legais, que vão da romantização e compulsoriedade da maternidade à criminalização do aborto e aos requisitos para a laqueadura. “A maternidade e o amor materno são construções ideológicas e, atualmente, há uma imposição social para que a mulher se torne mãe, visto que só será possível que ela atinja a sua completude dessa forma”, afirma a psicóloga Andressa da Silva.

Há quem tenha o sonho de viver a experiência de engravidar, carregar um bebê no ventre, cuidar do recém-nascido e ser responsável por ele para sempre — com todas as delícias e as dores do caminho. Mas há também quem não sinta essa vontade. E tudo bem — ou assim deveria ser. Na prática, a mulher que diz que não quer ter filho é acusada de ser egoísta, de detestar crianças e, supõe-se, está destinada a ser solitária pelo resto da vida e nunca conhecer o verdadeiro amor. “Aquelas que optam por caminhos que desse divergem são frequentemente estigmatizadas”, completa Andressa.

Algumas se dizem tão certas de não quererem filhos que chegam a procurar métodos contraceptivos mais radicais e até irreversíveis, como a laqueadura, mesmo sem uma prole e ainda com muitos anos de fertilidade pela frente. Outras ainda reclamam do acesso à cirurgia, já que existem critérios estabelecidos em lei para realização dela. Embora o texto fale em idade mínima de 25 anos ou pelo menos dois filhos para estar apta ao procedimento, há médicos que interpretam a necessidade de ambas as exigências e se recusam a fazer a cirurgia quando a mulher não tem filhos.

Para a chefe do Serviço de Reprodução Humana e Endoscopia do Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib), Rosaly Rulli Costa, é realmente prematuro fazer uma esterilização irreversível em pessoas tão novas. “Há cinco anos, uma pesquisa do IBGE mostrou que 55% das mulheres com idade fértil tinham laqueadura. É um índice de fecundidade baixo quando se compara ao da França, só que em um país pobre, que ainda precisa de jovens”, completa.

Ela explica que as mulheres têm o direito de desejar ou não se projetarem na sociedade com descendentes, mas explica que existem métodos contraceptivos tão eficientes quanto a laqueadura e que permitem que elas tenham a possibilidade de mudar de ideia ao longo da vida fértil, entre eles, o DIU. “Só não pode esperar demais, porque nós temos nosso relógio biológico”, recomenda.

Uma vida sem filho, sim

A advogada Patrícia Marx, 33 anos, nunca gostou de brincar com bonecas bebês, fingir que era mãe delas, dar “papá”, “mamá”, fazê-las dormir. Gostava mais de brincar com Barbies adultas, que tinham profissões. Durante a adolescência, já dizia que não queria ser mãe. “A minha mãe dizia que eu tinha que ser, que eu ia mudar de ideia. Eu me questionava o porquê”, relembra. Ela também não negava a possibilidade de o que a mãe dizia acontecer. Podia ser verdade.

Mas não foi. Patrícia se casou cedo, aos 19 anos, ainda cursando faculdade. Enquanto o marido queria muito um filho e escondia o anticoncepcional que ela tomava diariamente, ela queria terminar os estudos, ter uma carreira. Era o pai dela quem lhe providenciava pílulas para substituir as furtadas. “Diziam que, com a pressão, eu acabaria cedendo. Mas eu achava aquilo tão injusto. A gravidez e o puerpério eram tão difíceis para a mulher e, para o homem, tão fácil”, refletia.

Depois, ainda sem vontade de ser mãe, acabou se separando. Em seguida, fez redução de estômago, o que lhe impedia de ficar grávida por um tempo. Foi quando o medo de engravidar se tornou patológico e ela desenvolveu a tocofobia. “Eu achava que meu método ia falhar. Eu fazia exame Beta HCG (exame de sangue que detecta gravidez) toda semana. Fiquei vivendo de um modo que não era saudável. Depois, reduzi bastante as relações sexuais”, conta.

Tudo isso ainda aliado à culpa que sentia por não querer ter filho. Culpa que outras pessoas colocavam nela. Começou a fazer terapia e a elaborar que aquilo não era um problema. Depois, começou a conhecer outras mulheres que, como ela, também não pretendiam ser mães. “Eu fui vendo que era normal não querer ter filho: tinha tanto mulheres quanto homens que também não queriam. Eu não era uma pessoa amarga e sem coração por isso, como diziam”, alegra-se.

Apoio na escolha

Patrícia também não odeia crianças, como já foi acusada. Tem uma irmã de 9 anos, a quem ajuda a cuidar em muitos momentos, e também um sobrinho. “Eu gosto de dizer que amo tanto meu filho que prefiro que ele não nasça. Mas eu respeito muito quem o tem. Eu quero ajudar os que já estão vivos, então também faço trabalho voluntário”, afirma.

A princípio, Patrícia achava que a solução para evitar em 100% uma gravidez indesejada seria a laqueadura, já que o medo afetava até mesmo a saúde mental dela. Depois, no entanto, descobriu que o método tem uma taxa de reversão espontânea que varia de 0,5% a 1%, ou seja, maior do que o uso do DIU, o qual, quando tentou pôr, sentiu dores terríveis. A opção pra ela seria algo mais drástico: a salpingectomia — a retirada das trompas de falópio.

Aquilo lhe deu a liberdade que sempre quis. Tal decisão foi apoiada por seu segundo e atual marido. “Ele respeita completamente minha opção e não quer filhos também. As mulheres precisam saber que é possível encontrar uma pessoa assim”, afirma. Ela criou páginas em redes sociais com informações para quem passa pelas mesmas dificuldades que ela passou. Lá, dá dicas de como proceder em caso de negativa de médicos sobre fazer o procedimento, ainda que a mulher se encaixe nos pré-requisitos. E, acima de tudo, dá apoio moral para quem ainda se sente diferente só por não querer ser mãe.

Medo de engravidar

Ter algum temor das mudanças promovidas por uma gravidez e do parto, quando já se está grávida, é comum. Mas a tocofobia é quando o medo de estar gestante ou de parir se torna patológico. Segundo a psiquiatra Ibone Olza, ela pode ser primária, em mulheres que nunca gestaram, ou secundária, nas que já tiveram um parto. “É importante que elas tenham um tratamento multidisciplinar e com psicoterapia, mesmo que a mulher não queira filhos, para não viver em função daquele medo. E, quando quer, para superá-lo”, explica. Ela acrescenta que a tocofobia pode ser um sintoma de outros transtornos psíquicos, de síndrome pós-traumática ou até de um abuso sexual.
 

Arrependimento 

Das 1.182 mulheres que procuraram o serviço de fertilização in vitro pela primeira vez, 99 estavam laqueadas e arrependidas

Das 1.740 mulheres que procuraram o serviço de fertilização in vitro pela segunda vez, 140 estavam laqueadas e arrependidas

Fonte: levantamento feito no Hmib
 

Critérios para a laqueadura

  • Somente é permitida a esterilização voluntária nas seguintes situações: Em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 25 anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce.
  • É vedada a esterilização cirúrgica em mulher durante os períodos de parto ou aborto, exceto nos casos de comprovada necessidade, por cesarianas sucessivas anteriores.
  • Na vigência de sociedade conjugal, a esterilização depende do consentimento expresso de ambos os cônjuges.

Projeto de lei

De autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), o Projeto de Lei nº 107/2018 pretende mudar o estabelecido atualmente na lei sobre planejamento familiar. O objetivo é facilitar o acesso à laqueadura e à vasectomia. Entre as mudanças, sugere-se que a mulher tenha o direito de se submeter à laqueadura no período imediato pós-parto ou pós-aborto, durante a mesma internação. Além disso, também retira a exigência de autorização do cônjuge para o procedimento de esterilização, dando mais autonomia tanto à mulher quanto ao homem que desejam fazê-lo, independentemente de estarem em sociedade conjugal.  

Documentário 

Maternidade compulsória é um documentário de Caroline Balduci que dá voz a mães e mulheres para falar sobre o outro lado da maternidade, aquilo que não está registrado nos álbuns de família, redes sociais e ausente até mesmo das conversas mais íntimas. Na obra, personagens discutem sobre como ser mãe é um trabalho cansativo, e a forma com que a sociedade julga mulheres que têm coragem de se abrir e gritar ao mundo que odeiam ser mães. O documentário também aborda as dificuldades que os pais participativos sentem na criação dos filhos, mulheres que gostam de ser mães, aquelas que não querem e ativistas feministas que problematizam a situação.




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