Em um cenário de crise mundial, devido à covid-19, e com menos comida disponível, o Prêmio Nobel da Paz de 2020 concedido ao Programa Mundial de Alimentos (WFP, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU), foi um recado a líderes internacionais sobre a necessidade de cooperação e solidariedade para vencer a pior pandemia em décadas.
Só em 2019, o WFP atendeu cerca de 100 milhões de pessoas em 88 países, vítimas de insegurança alimentar aguda e fome. Também é considerado o principal instrumento para atingir a meta de erradicar a fome, um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU.
Quem responde pelo programa no Brasil é o economista Daniel Balaban, diretor do Centro de Excelência contra a Fome do WFP no país. Em entrevista exclusiva ao Correio, ele conta que recebeu com surpresa e alegria a notícia de que o programa havia vencido a premiação, e alerta para a necessidade urgente de cooperação multilateral, como uma solução para acabar com a fome no mundo.
Qual é a importância de o programa ganhar o prêmio Nobel da Paz, e como você recebeu a notícia de que tinham vencido?
Para o WFP, o mais importante é colocar luz sobre as milhões de pessoas que estão hoje passando fome, desesperançados, e que não têm o que comer. Hoje, o WFP alimenta mais de 100 milhões de pessoas no mundo e está presente em mais de 80 países, então esse prêmio vem como uma forma de colocar luz sobre esse trabalho feito em todo o mundo. Mostrar que existem pessoas que estão em situação de necessidade e que só tem uma forma de ajudar essas pessoas, com a união de todos aqueles que têm condições. Para nós, foi uma gratificação receber essa notícia, a recebi logo cedo, por volta das 6h da manhã já tinha o alerta no meu celular. Não esperava, foi uma surpresa total, mas o mais importante é fazer com que o mundo se lembre das pessoas desassistidas e que precisam de ajuda nesse momento.
Acha que foi também um recado aos países que têm criticado a ONU e o multilateralismo?
O WFP é um exemplo de agência multilateral. Sem ajuda dos países, o WFP não existiria. Somos uma agência da ONU, mas não temos orçamento próprio definido, tudo depende de doações dos países, da sociedade e da iniciativa privada. É exatamente essa união dos países que faz com que os que têm mais condições ajudem os que não têm menos, e assim deveria ser no planeta todo. Quem tem mais, ajuda quem tem menos. Eu gosto de uma analogia, é como se fosse uma pessoa dentro de um buraco de três ou quatro metros. Ela só vai conseguir sair desse buraco se alguém estender a mão. Se ninguém fizer isso, ela vai morrer dentro desse buraco. As pessoas que estão em situação de fome só vão conseguir sair da situação se receberem ajuda. Ninguém quer ficar em situação de pobreza, ninguém merece ficar em situação de pobreza. É isso que temos que ter em mente. Quem está com fome não consegue estudar ou trabalhar, a gente precisa ajudar essas pessoas a se estruturarem para que elas sigam um caminho de felicidade e não percam as esperanças.
E qual é o papel do Brasil no programa? Como tem sido nossa participação nele?
O Brasil não recebe um apoio direto do WFP, até porque o Brasil é um país tido como renda média, somos a 9º economia e um dos maiores produtores de alimentos do mundo. Mas o Brasil trabalha como um apoiador na cooperação técnica internacional. Estamos aí desde os anos 2000 doando alimentos, recursos e entramos com uma ajuda técnica que tem a ver com o desenvolvimento da agricultura familiar, programa de alimentação escolar e aquisição de alimentos. Esses são programas exitosos no Brasil e servem de exemplo para vários países do mundo. Alguns criaram políticas olhando para as políticas brasileiras, então o Brasil tem sido apoiador nesse sentido, ajudando a criar políticas públicas de combate à insegurança alimentar e nutricional.
O senhor disse, no início da pandemia, que o Brasil corria o risco de voltar para o Mapa da Fome. Esse risco ainda existe?
Esse risco correm todos os países do mundo que não olharem para a questão da fome. Mas o Brasil ainda tem tempo de reverter essas questões e colocar mais recursos nas suas políticas sociais para enfrentar esse problema. O último dado do IBGE diz que temos mais de 10,3 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Dá tempo de reverter esse quadro se nós começarmos a investir mais recursos em políticas que salvem as pessoas dessa situação. E não é apenas entregando um prato de comida, porque se você dá um prato de comida hoje, você tem que dar outro amanhã. A gente precisa fazer uma política que integre essa população e torne essas pessoas mais cidadãs. Esse é o papel das políticas públicas e é isso que tem que ser feito, dinamizar as políticas para que nós possamos reverter esse aumento do número de pessoas em insegurança alimentar no país.
A pandemia de covid-19 pode ter piorado o cenário da fome?
Sim, e por uma questão muito simples. Muita gente ficou desempregada e as pessoas deixaram de poder frequentar seus pequenos negócios, e muitos não tinham condições e recursos para sobreviver nesse tempo. O que está salvando hoje o Brasil é o auxílio emergencial. O problema é que essa renda básica tem hora e data para terminar e, no dia que terminar, vai surgir um problema mais sério. Sem recurso, não há como comprar alimentos. Por isso digo que este é o momento para que nós já pensemos no depois e no que vai ser feito após o fim do auxílio emergencial para dinamizar a economia. Dá tempo de reverter. Basta que haja união dos governos para achar soluções e saídas para resolver a situação da fome.
Quais são as boas práticas ao redor do mundo que estão funcionando e ajudando a acabar com a fome?
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é um bom exemplo. Ele dá alimentação para crianças, as mantêm na escola, e, o mais importante, compra os alimentos direto dos agricultores familiares, o que dinamiza a economia local. Ao mesmo tempo, esses alimentos saudáveis e nutritivos vão servir às crianças que, bem alimentadas, vão entender melhor o que está sendo ministrado em sala de aula. Veja, é um único programa que atende a área de nutrição, saúde, educação, economia, desenvolvimento social e agricultura. Existem vários outros em várias partes do mundo, mas destaco esse por ser um programa brasileiro exaltado no mundo todo. Países estão criando programas de alimentação escolar olhando para a experiência brasileira e isso tem salvado muitas vidas.
Acabar com a fome parece uma coisa muito distante e complexa para muitas pessoas. Mas como a sociedade civil e a iniciativa privada podem contribuir com essa missão de acabar com a fome no mundo?
É possível acabar com a fome no mundo. Nós temos uma tecnologia muito avançada, temos celulares de última geração, satélites, carros que dirigem sozinhos, já estamos com a vacina contra a covid-19 quase na reta final, e elas começaram a ser desenvolvidas em seis ou sete meses. Isso foi possível porque houve vontade política em resolver o problema. Resolver a questão da fome é muito mais fácil que a vacina. O problema é chamar a atenção das autoridades mundiais para a solução. No dia que nós resolvemos o problema da fome, nós resolvemos as guerras. Há estudos que dizem que a fome está intimamente ligada ao crescimento de conflitos. O homem com fome está suscetível a conflitos e guerras, porque as pessoas estão desesperançadas. Os países reclamam de refugiados, mas qualquer pessoa em situação de desesperança vai tentar quebrar esse ciclo. A gente tem que tentar entender o próximo, e, no dia que isso acontecer, vamos ter um planeta realmente digno da nossa vivência nele. O dia que entendermos isso vamos resolver muitos problemas que achávamos insolúveis, mas a solução está nas nossas mãos.
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