ENTREVISTA

"A água será disputada", afirma Rafael Zavala, representante da FAO no Brasil

Segundo representante da ONU para a Alimentação e a Agricultura no Brasil, o desafio do país é conciliar a produção de alimentos no combate à fome com a preservação da biodiversidade; e gerir a utilização de água com responsabilidade

Israel Medeiros*
Edis Henrique Peres*
postado em 17/10/2020 07:00
 (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
(crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

Esta semana, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) completou 75 anos. Durante sua existência, por meio de ações como o Programa Mundial de Alimentos, empreende esforços para minimizar a fome no mundo. Atualmente, crises alimentares ocorrem em 55 países, afetando cerca de 158 milhões de pessoas. Em entrevista ao CB.Agro — uma parceria do Correio Braziliense com a TV Brasília, ontem, Rafael Zavala, representante da instituição no Brasil, apontou como maior problema no combate à fome no mundo a distribuição injusta, com desperdício de alimentos e ausência de responsabilidade ao lidar com recursos naturais.

Segundo ele, muito ainda precisa ser feito no Brasil. Apesar disso, ressalta, a nação tem caminhado na direção certa ao implementar iniciativas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). A melhor distribuição de alimentos, avalia Zavala, passa por boas políticas públicas aliadas a leis eficazes e conscientização da população sobre consumo responsável.

Qual é o principal problema a ser enfrentado quando se fala em combate à fome?

Hoje se produz mais do que o que realmente necessitamos, mas o grande problema é a distribuição desigual. As pessoas precisam consumir uma determinada quantidade de alimentos para ter uma vida saudável. O dia mundial da alimentação, comemorado hoje (ontem), tem um lema: cultivar, nutrir e preservar. Esse é o desafio. Inclusive, me chamou a atenção uma fala do Papa Francisco, em Roma, ao dizer que, para a humanidade, a fome não é só uma tragédia, mas uma vergonha. Ele apontou que a fome é causada, principalmente, por uma distribuição desigual dos frutos da terra, uma consequência das mudanças climáticas e conflitos em diversas regiões do planeta. Então, todos somos responsáveis. Acho que é uma mensagem muito clara e forte de que precisamos mudar a produção de alimentos, como os transformamos e consumimos.

Para combater o desperdício é preciso pensar em questões relacionadas à economia, também?

Precisamos de um maior equilíbrio entre políticas públicas e proteção social, mas, também, entre a geração de empregos, principalmente aqueles na área de transformação de alimentos e agricultura familiar. Isso é necessário para fortalecer esse setor, tornando o trabalho no campo mais digno e evitando a migração para as cidades. Se tivermos um marco de políticas públicas e de leis fortalecido e equilibrado, vamos ficar mais perto de atingir a fome zero e o índice zero em perdas e desperdícios.

Como o senhor enxerga a questão do desperdício de alimentos no Brasil?

No mundo, calcula-se que 14% de todos os alimentos produzidos se perdem no desperdício. No caso da América Latina, são 11%. Mas, isso ainda significa muito, são 300kg de alimentos por pessoa perdidos a cada ano. A distribuição desse total se dá da seguinte maneira: aproximadamente 28% se perdem na produção; outros 27%, consumo; 21%, no transporte; cerca de 6%, no beneficiamento e processamento; e 17%, no varejo e distribuição. Há desafios em todas as etapas. Acho que o Brasil tem a infraestrutura institucional para fazer esse desafio mais palpável.

A legislação no Brasil é adequada?

Na região da América Latina, um dos marcos legais mais robustos é o do Brasil. Toda a institucionalização do processo Fome Zero ou do Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar), como também toda a infraestrutura de distribuição — ceasas, comissões de abastecimento, tudo isso é muito robusto. O risco, aqui, é mais localizado em certas regiões. Também precisamos lembrar que é um país latino-americano, muito desigual. Eu estive nos municípios do Paraná e Santa Catarina, com o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) próximo de alguns países da Europa, mas também no Maranhão, Pará, onde o IDH é pior do que em alguns países africanos. Temos que trabalhar esse foco nas regiões mais vulneráveis.

O que a FAO pode fazer para ajudar a combater a desigualdade no país?

A FAO está aqui para fortalecer as políticas públicas em torno da transformação dos sistemas alimentares e acerca da segurança alimentar. Não trabalhamos como ONG, trabalhamos com o Estado e, também, com o Poder Judiciário. Estamos trabalhando com a regularização fundiária, mas, também, com governos estaduais. E orientando onde somos mais úteis, principalmente no Nordeste e Amazônia. Trabalhamos com o Ministério da Agricultura, com a Secretaria da Agricultura Familiar e Cooperativismo, Secretaria de Pesca e o Ministério da Cidadania nos programas de alimentação. Temos uma parceria muito forte com a Agência Brasileira de Cooperação, com o Ministério do Meio Ambiente, com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre outros. O desafio no Brasil é mais localizado, com degradação ambiental e crescimento econômico em áreas vulneráveis.

Há uma tradição, no Brasil, de preparar o solo por meio do fogo, o que pode resultar em queimadas descontroladas. Não há uma forma melhor de se fazer isso?

Na Colômbia e em outros países da América e do mundo, isso é um desafio. Significa ter um marco legal especial para essa fronteira agrícola. Geralmente, divide-se o solo apenas como uso agrícola, uso urbano e reserva, não temos uma opção entre reserva e uso agrícola. Temos uma oportunidade para promover serviços agroecológicos e premiar pessoas que estão encarregadas da preservação. Em outros países, há marcos mais rigorosos, mas é um fenômeno que acontece. A legislação brasileira pode ser fortalecida por meio de ajustes. Por exemplo, os camponeses, muitos vivem em região de floresta, temos que inovar para manter essa população e fazer as coisas de maneira diferente. Temos que reinventar para reajustar as políticas públicas dirigidas para essas regiões, não somente no Brasil.

De que forma a preservação ambiental influencia no combate à fome?

Primeiro, temos que fazer um esforço por uma melhor utilização dos insumos, principalmente água e solo. Um desafio que enfrentamos é o nível de degradação do solo e, também, a baixa eficiência dos sistemas de irrigação. A nível latino-americano, um dos grandes desafios é o melhoramento tecnológico para reduzir os grandes consumos d'água. Com as mudanças climáticas e quantidades mais frequentes de secas, a água será um recurso em disputa.

O país está no caminho certo?

Sim, mas temos que trabalhar muito a conscientização do consumidor. Precisamos de consumidores mais informados, conscientes da origem dos alimentos, pois temos que esquecer os alimentos anônimos. É preciso saber, também, sobre a quantidade de emissão de carbono envolvida no transporte dos alimentos na mesa. Aí, é preciso considerar se eles vêm de lugares muito afastados ou é produção local. Isso é importante, uma das saídas é procurar os circuitos curtos, reduzir a distância entre a fazenda e a mesa e, também, dar mais tempo à alimentação. Muitas vezes, morando em cidades grandes, vamos ao mercado e compramos em excesso, o que gera muito desperdício. Comprar menos é uma boa solução contra o desperdício.

*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro 

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