Sociedade

Aprovado na CCJ, confira o que pode mudar com o PL 490

Maioria de deputados vota a favor de proposta que altera direitos estabelecidos pela Constituição. Após a votação dos destaques, prevista para hoje, o texto segue para o plenário. Lideranças avaliam a possibilidade de judicialização

Luiz Calcagno
postado em 24/06/2021 06:00
Diferentes etnias protestam em frente ao anexo 2 da Câmara: dois dias de manifestações contra o projeto que atinge direitos indígenas -  (crédito: Elio Rizzo/Estadão Conteúdo)
Diferentes etnias protestam em frente ao anexo 2 da Câmara: dois dias de manifestações contra o projeto que atinge direitos indígenas - (crédito: Elio Rizzo/Estadão Conteúdo)

Em uma sessão tumultuada na Câmara dos Deputados, a Comissão de Constituição, Cidadania e Justiça (CCJ) aprovou, por 40 votos a 21, o texto base do projeto de Lei 490/2007. A oposição lançou mão do kit-obstrução, mas foi vencida em todas as disputas na comissão, onde o governo detém maioria. Após a votação dos destaques, prevista para hoje, o texto segue para o plenário da Câmara. Se aprovado, será encaminhado à CCJ do Senado. Parlamentares oposicionistas e lideranças dos povos originários consideram muito provável o projeto de lei, desfavorável aos direitos indígenas, ir à sanção presidencial. Eles não descartam judicializar o tema, com apelação ao Supremo Tribunal Federal.

O texto transfere do Executivo para o Legislativo a prerrogativa de demarcação de terras indígenas. Além disso, atinge vários direitos dos indígenas previstos na Constituição, como o usufruto das terras demarcadas e a criação de um marco temporal para que determinados povos permaneçam nas regiões (veja quadro). Única parlamentar indígena do Congresso, a deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), destacou que, terminada a batalha legislativa, em caso de derrota, o próximo passo será entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin).

“O relatório foi apresentado com uma série de vícios constitucionais. Desde a regulamentação do artigo 231 para flexibilização do usufruto, até matérias que falam da questão da mudança de procedimento de demarcação do Executivo para o Legislativo, que é tema constitucional e não deveria ser tratada em um projeto de lei ordinária”, alertou. A parlamentar fez uma questão de ordem sobre o tema durante a sessão da CCJ, mas não foi atendida. “Alertei sobre vários pontos. O projeto vai para o plenário. Vamos continuar na defesa dos povos indígenas, depois o texto vai para o senado, e tem um caminho para continuarmos nessa insistência. Vamos utilizar todos os mecanismos de defesa dos povos indígenas, incluindo uma Adin, se for necessário, para barrar”, garantiu.

O marco temporal busca restringir o direito à terra dos povos indígenas a ocupações anteriores a 1988, e pode ganhar uma definição a partir de um julgamento no STF de um recurso extraordinário com repercussão geral (RE-RG) 1.017.365. Trata-se de um pedido de revisão de uma decisão de ação de reintegração de posse de 2009, de uma área ocupada por Guaranis e Kaingang, em Santa Catarina. Se o STF decidir contra o marco, poderá criar uma jurisprudência com potencial para amparar etnias em todo o Brasil. Parlamentares, no entanto, sem esperar o julgamento, marcado para 30 de junho, inseriram no texto um dispositivo que determina que as comunidades indígenas que ocuparam terras após 1988 percam esses espaços.

O deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS) destacou outros pontos. Afirmou que o projeto acarretará prejuízos financeiros para o agronegócio brasileiro. “Vai manchar ainda mais a imagem do Brasil lá fora. Os que têm a lavoura, que produzem corretamente, podem ter seu produto embargado, com restrições graves. O agro também pode ser castigado”, salientou.

O deputado Hiran Gonçalvez (PP-RR), por sua vez, defendeu o PL. “Foi uma votação longa, durou o dia todo, a oposição usou todos os recursos de obstrução, o que é muito válido, mas acho que nós fizemos um serviço ao país. Está consignado na Constituição que podemos utilizar os recursos nas terras indígenas salvaguardando as devidas compensações. E no nosso país temos muita riqueza em terra indígena, e os índios vivem de maneira miserável, por conta dessa visão míope da oposição”, argumentou. “Temos muita riqueza e acho que com esse processo, vamos resgatar a dignidade dos índios, e eles vão utilizar todos os seus mananciais hídricos, minerais, com regulamentação adequada. E nós deixamos de ficar à mercê da Funai, com suas decisões monocráticas de antropólogos que pouco conhecem a realidade do nosso país”, criticou.

Retrocesso

A liderança de Sônia Guajajara, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) classificou a aprovação do PL pela CCJ como “inaceitável”. “Temos outros trâmites, como plenário e Senado, e aprovando no Congresso, ainda temos o Supremo. A Apib já está se preparando para entrar com uma ação de inconstitucionalidade no STF”, disse.

Para Guajajara, o projeto fragiliza toda a demarcação de terras indígenas no país. “Se aprovado, todos vão se sentir donos (das terras indígenas). Terra indígena é terra pública, da União. E o PL abre esse espaço para quem quer invadir, ocupar e produzir. Pois para eles, o que vale é a exploração para gerar lucros. Vai aumentar os conflitos territoriais, com fazendeiros e com agronegócio. Isso já é uma realidade, mas com a insegurança, esses conflitos só aumentarão”, destacou.

Advogado de organizações indígenas, o analista político do portal Inteligência Política Melillo Dinis avalia que será necessário um trabalho de contenção no Senado, mas não vê possibilidade de os senadores barrarem o PL, que descreve como “um retrocesso ambiental”. “É um projeto de toque de caixa e sem debate público ou audiência. Traz consigo uma legalização da grilagem de terra e atinge diretamente o sistema de estruturação das terras indígenas à beira da votação do marco temporal. É um tiro no pé do Brasil. Vai ser difícil demonstrar o comprometimento ambiental, pois as terras indígenas são um dos principais instrumentos para evitar a pressão territorial e o desmatamento”, destaca.

Advogado e doutor em direito pela Universidade de São Paulo, Renato Ribeiro destaca que os parlamentares só poderiam fazer as alterações por meio de uma proposta de emenda Constitucional (PEC). “O processo de demarcação das terras indígenas é de competência da União, e as conquistas dos povos originários do Brasil são fruto de lutas históricas. Levar ao Congresso Nacional, por alterações de leis com hierarquia inferior à Constituição, facilitará o avanço da mineração, desmatamento e redução da área atualmente demarcada. A inconstitucionalidade reside no fato de permitir a mitigação de direitos fundamentais adquiridos, tendo em vista que a Constituição Federal garantiu a esses povos o acesso a essas terras e a demarcação, tal como se encontra, já conta muitos anos”, apontou.

Terra arrasada

Confira o que pode mudar com o PL 490/2007 e o que diz a Constituição Federal:

O que o projeto de lei altera

» O governo poderá construir rodovias, hidrelétricas e outras obras em terras indígenas. Isso é proibido atualmente. Também não precisará comunicar aos povos das obras;
» O PL prevê que fazendeiros poderão assinar contratos com indígenas para plantar soja ou criar gado em terras indígenas, o que enfraquecerá a demarcação;
» O texto também trata do marco temporal. Prevê que povos originários só terão direito à demarcação se comprovarem que já estavam no território em 5 de outubro de 1988 (data da aprovação da Constituição);
» Segundo o projeto de lei, qualquer pessoa poderá reclamar da demarcação, mesmo que o Ministério da Justiça já tenha aprovado o estudo da Funai ou, até, após a homologação do território pela presidência da República.

O que a Constituição determina

» As terras indígenas são um direito anterior à chegada dos portugueses ao Brasil. O marco temporal, portanto, fere uma cláusula constitucional;
» Os povos indígenas têm direito ao usufruto exclusivo das terras demarcadas. Com o projeto, essa garantia será violada em caso de contratos entre fazendeiros e indígenas;
» Os indígenas têm direito de ocupar totalmente as terras demarcadas. A possibilidade de execução de obra nesses territórios viola esse direito.

Fonte: Rede Xingu


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