Garimpo

Nova corrida do ouro alimenta destruição da Amazônia

Serra Pelada atraiu dezenas de milhares de brasileiros com a promessa de riqueza instantânea

Agence France-Presse
postado em 09/11/2021 08:22
 (crédito: Carl DE SOUZA / AFP)
(crédito: Carl DE SOUZA / AFP)

Parado em frente ao buraco vermelho aberto em seu quintal, Antônio Silva tenta explicar a razão que o levou a procurar novamente ouro na Amazônia.

Esse avô de seis netos e 61 anos tinha dado como superada sua época de garimpeiro, quando se deixava seduzir pela febre do ouro, prejudicando o meio ambiente.

Mas a pandemia chegou, os preços dispararam e ele tomou uma decisão: saiu da aposentadoria, alugou uma escavadeira amarela e contratou quatro trabalhadores, que cavaram um buraco gigante no meio do terreno que comprou inicialmente para criar gado, numa área desmatada de São Félix do Xingu, no Pará.

Do buraco, do tamanho de uma casa, sai água turva bombeada e peneirada para separar as partículas de ouro. Com resultados decepcionantes.

"A gente sabe que este trabalho está errado. Eu sei que tem problema, que o que a gente faz não é legal. Mas a gente não tem outra opção. Sou aposentado, não tenho outra renda".

Silva - um pseudônimo - começou a garimpar na corrida do ouro dos anos 1970 e 1980, na notória mina da Serra Pelada, no sudeste da Amazônia.

Serra Pelada atraiu dezenas de milhares de brasileiros com a promessa de riqueza instantânea. A violenta e perigosa mina logo ficou famosa por imagens de uma miríade de homens encharcados de lama, aglomerados em seus barrancos como formigas, puxando sacos de terra de suas entranhas.

"Era doido. Doido mesmo", diz Silva, que era adolescente quando saiu do Maranhão e viajou para lá.

Voltou para casa em 1982, casou-se com sua esposa em 1983 e teve três filhos em três anos. Tentou um trabalho diferente, mas - diz ele - nunca conseguiu sobreviver com nada além do garimpo.

Ele já se arrepende da mina gigante em suas terras e dos R$ 50.000 de suas economias que gastou montando sua operação de garimpo improvisada.

"Não compensa", afirma. "Isso só estraga minha terra".

O garimpo ilegal está crescendo na bacia amazônica. A atividade foi impulsionada pelos preços recordes do ouro, que ultrapassaram US$ 2.000 por onça no ano passado, enquanto os investidores buscavam um refúgio da devastação causada pela covid-19.

Essa prática alimentou, por sua vez, a destruição da maior floresta tropical do mundo, que se acelera pelos garimpos ilegais de pelo menos três maneiras diferentes.

Em primeiro lugar, estão as próprias minas, que abrem gigantescas cicatrizes cor de ferrugem no verde exuberante da floresta. No Brasil, as minas destruíram um recorde de 114 quilômetros quadrados da Amazônia este ano. Este total equivale a mais de 10.000 campos de futebol.

Depois, tem o mercúrio tóxico usado para separar o pó de ouro do solo, que passa para a água.

Finalmente, há o fato de que muito disso está acontecendo em terras indígenas, onde gangues de garimpeiros invadem o que deveriam ser territórios protegidos, atacando aldeias, transmitindo doenças exóticas e devastando as comunidades que os especialistas dizem ser a chave para salvar a Amazônia.

Esta é a última de uma longa série de brutais corridas do ouro no Brasil, que acontecem desde o século XVII, quando colonos portugueses enviaram seus escravos africanos para as minas.

- 'Podem me matar' -


Silva diz que tem uma regra inquebrantável: ele não usa mercúrio.

Não se pode dizer o mesmo dos garimpeiros que invadem o território indígena, aterrorizando povos, cujas culturas tradicionais estão enraizadas na crença da convivência em harmonia com a natureza.

Estudos recentes descobriram que garimpeiros ilegais usaram 100 toneladas de mercúrio na Amazônia legal em 2019-2020, e que até 80% das crianças de aldeias vizinhas têm sinais de danos neurológicos, devido à exposição ao metal tóxico, incluindo pontuações de QI reduzidas.

O produto químico também envenena os peixes, principal fonte de alimento para muitas comunidades indígenas.

Os povos nativos que enfrentam esse pesadelo começaram a organizar patrulhas e protestos contra o garimpo - às vezes pagando um preço alto.

Maria Leusa Munduruku é uma líder do povo Munduruku, no estado do Pará, cujo território está entre os mais atingidos.

Quando garimpeiros ilegais começaram a subornar membros de sua comunidade com dinheiro, álcool e drogas em uma tentativa de se mudar para as terras indígenas, Munduruku, de 34 anos, organizou a resistência junto às mulheres locais.

Logo, ela estava recebendo ameaças de morte, afirma. Em 26 de maio, homens armados invadiram sua casa.

"Tinham dois litros de garrafas com combustível e jogaram em toda minha casa, ao redor da minha casa, dentro. E tacaram fogo", conta ela, com uma coroa de flores vermelhas enfeitando seu cabelo preto e amamentando seu bebê.

"Eu falei que eu não ia sair, que podiam me matar dentro da minha casa, porque eu não ia sair. Só Deus mesmo sabe por que não pegou fogo dentro da minha casa, porque tudo o que tem dentro, eles queimaram, mas a casa não conseguiam pegar fogo".

Munduruku, que tem cinco filhos e um neto, não desistiu. Em setembro, viajou para Brasília, a cerca de 2.500 km de sua aldeia, para ajudar a liderar um protesto de mulheres indígenas exigindo que o governo proteja suas terras.

"Tenho que garantir o futuro dos nossos filhos, ter onde pescar, onde viver", ela diz.

"É por isso que continuo lutando".

- Apoiado por Bolsonaro -


O Brasil extraiu 107 toneladas de ouro no ano passado, tornando-se o sétimo maior produtor mundial do metal precioso.

Garimpos ilegais explodiram sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, que pressionou para abrir reservas indígenas à mineração.

Um estudo recente revelou que apenas um terço da produção de ouro do Brasil tem origem legal documentada.

A ilegalidade e a impunidade alimentam as minas ilegais, cujo ouro é exportado para todo mundo, dizem promotores do estado do Pará.

A legislação atual permite que os vendedores atestem a origem de seu ouro simplesmente assinando um papel - qualquer papel.

O sistema produziu resultados de corrupção quase cômicos. Há três anos, o estado de Roraima, no norte, exportava 194 quilos de ouro para a Índia, apesar de não ter uma única mina legalmente registrada.

Os promotores começaram a perseguir os poderosos financiadores que traficam ouro ilegal.

Em agosto, mobilizaram-se para suspender as operações de três grandes exportadoras de ouro, pedindo a um tribunal que impusesse R$ 10,6 bilhões em multas.

Mas eles lutam contra interesses poderosos, explica a porta-voz do Ministério Público federal no Pará, Helena Palmquist.

"O setor do ouro tem acesso direto ao governo", afirma. "Há uma visão muito arraigada no Brasil de que a Amazônia existe para ser explorada, não para ser preservada", completa.

Mas isto pode estar mudando.

Em São Félix, o fazendeiro Laury Cândido Dantas Ferreira costuma pescar ao entardecer no rio Xingu, afluente de águas cristalinas do Amazonas em que outro rio mais ao norte, o Fresco, verte uma água turva que, segundo as autoridades, procede de resíduos da mineração ilegal.

Como muitas pessoas na região, Ferreira, 53 anos, apoia Bolsonaro. Mas considera que a destruição do meio ambiente foi muito longe.

"Quando eu mudei para cá, a água não era suja desse jeito. Aquilo tudo é garimpo. Antes era branquinho, igual a esse aqui. É complicado. Se eles não pegam firme mesmo, não tem como voltar ao normal".

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