Pandemia

Ministério da Saúde ignora diretriz do Conitec e mantém o kit covid

Nota assinada por secretário rejeita ponderações técnicas e não reconhece a ineficácia de medicamentos contra o coronavírus

Maria Eduarda Cardim
Gabriela Bernardes*
postado em 22/01/2022 06:00
 (crédito: Tony Winston/MS)
(crédito: Tony Winston/MS)

O Ministério da Saúde rejeitou, em portarias publicadas, ontem, no Diário Oficial da União (DOU), as diretrizes da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao Sistema Único de Saúde (Conitec) de não utilização de medicamentos do chamado "kit covid" para tratamento em pacientes do SUS infectados com a covid-19. Na prática, a decisão mantém o país sem uma recomendação oficial de como antender aos pacientes infectados, após quase dois anos de pandemia.

A recusa em sepultar o "kit covid" — que inclui cloroquina, azitromicina e ivermectina — foi materializada em uma nota técnica do secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério, Hélio Angotti Neto. Ele defendeu a manutenção das duas substâncias a partir do "princípio bioético da beneficência". Disse, ainda, que há evidências que demonstram impacto positivo, mesmo que ainda "não sejam de nível máximo de qualidade". Angotti cita o "respeito à autonomia profissional" e a "necessidade de não se perder a oportunidade de salvar vidas".

"Em termos de autonomia, visando sempre ao bem do paciente e ao aproveitamento da oportunidade de salvar vidas que é imperativo na prática médica profissional, há que se falar em uma cooperação de princípios no âmbito tanto do tratamento ambulatorial — que não é sinônimo de tratamento precoce na metodologia adotada na formulação das Diretrizes — quanto do hospitalar", salienta a nota.

A Conitec é o órgão ligado ao Ministério da Saúde responsável pelos protocolos clínicos e diretrizes de saúde. Entre os documentos ignorados, está o estudo Diretrizes Brasileiras para Tratamento Medicamentoso Ambulatorial do Paciente com Covid, que rejeita o uso das substâncias do kit covid e de outros medicamentos sem eficácia para tratar a doença em pacientes que estão em tratamento ambulatorial ou hospitalar. As normas que regulamentam o tratamento hospitalar estavam engavetadas na pasta desde junho do ano passado.

"Viés político"

Entre as razões para barrar as diretrizes da Conitec, Angotti também acusou os estudos de seguirem um "possível viés na seleção de estudos e diretrizes" e condenou o trabalho da imprensa e da CPI da Covid. Para o secretário, houve "repetidos vazamentos de informações com intenso assédio da imprensa e de agentes políticos da CPI da Covid sobre membros da Conitec". Por isso, segundo ele, a elaboração das diretrizes "passou por processos de grande tumulto", o que "pode ter pressionado membros da Conitec".

"Compreende-se que o contexto da pandemia levou à intensa politização no âmbito da saúde pública e privada em todo o mundo, o que acrescenta risco de difícil mensuração à qualidade assistencial prestada à população. Conclui-se que o cenário de elaboração das Diretrizes Terapêuticas sofreu pressões diversas devidas ao complexo cenário da atualidade, o que pode ter influenciado subjetivamente todo o processo", escreveu Angotti, que é conhecido por suas ligações com o presidente Jair Bolsonaro, defensor da prescrição da cloroquina contra a covid.

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Memória

Insistência do governo

Apesar da evidência de que apenas as vacinas contra a covid-19 dão resultado, o presidente Jair Bolsonaro e setores do governo federal não admitem o recuo da pandemia em função do avanço da imunização. E continuam a defender a prescrição de medicamentos comprovadamente sem eficácia contra o novo coronavírus. Relembre de alguns momentos em que a ciência foi abandonada.

TrateCOV — O Ministério da Saúde lançou o aplicativo, em 2021, que recomendava o "tratamento precoce". Profissionais de saúde inseriam nele detalhes do prontuário dos pacientes, para saber se tinham contraído covid. A resposta, invariavelmente, sugeria o início do "tratamento" — até mesmo para recém-nascidos, tal como fizeram para testar a integridade do app, depois retirado do ar.

Cobrança da Capitã — A secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, ficou conhecida pelo apelido por defender a prescrição da cloroquina contra a covid. Sua confiança na substância era tanta que cobrou a aplicação do kit covid aos profissionais da Secretaria de Saúde de Manaus em plena crise de abastecimento de oxigênio no Amazonas — quando dezenas de pessoas morreram asfixiadas na rede pública de saúde.

Médicos pela vida — Um grupo de profissionais alinhados com Bolsonaro defendeu a aplicação do kit covid. Chegou até a divulgar um manifesto que, descobriu-se depois, foi pago por um laboratório produtor de ivermectiva — substância que integra o kit covid.

Verde-oliva — Em 2020, com a pandemia e a pregação do governo pelo "tratamento precoce", o Laboratório Químico do Exército aumentou a produção da pílula de cloroquina em 900%, em relação ao que costumava produzir em um ano — e gastou R$ 1,14 milhão.

Emas do Alvorada — Na mais explícita propaganda da cloroquina, o presidente Jair Bolsonaro foi fotografado mostrando uma caixa do medicamento para uma das emas do Palácio da Alvorada.

Negacionismo na CPI da Covid — O senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) tornou-se destaque por apresentar não apenas teorias supostamente científicas já desmentidas pela comunidade internacional de pesquisadores, mas também pela defesa que fez do "tratamento precoce". E citou os municípios de Porto Feliz (SP), Porto Seguro (BA) e Rancho Queimado (SC) como exemplos do uso bem sucedido do kit covid. As evidências, porém, o desmentiram. 

*Estagiária sob a supervisão de Fabio Grecchi