POVOS ORIGINÁRIOS

"A terra é nossa carne", diz cacique Pataxó ao cobrar demarcação na Bahia

A falta de demarcação de territórios gera insegurança jurídica aos povos originários. Desde ano passado, ao menos sete indígenas pataxós morreram em conflito com fazendeiros

Aline Gouveia
postado em 24/03/2023 21:14 / atualizado em 24/03/2023 21:15
Cacique Mãdy Pataxó -  (crédito: Arquivo Pessoal)
Cacique Mãdy Pataxó - (crédito: Arquivo Pessoal)

Às margens do rio Cahy estão localizadas as Terras Indígenas (TI) Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal, no sul da Bahia. Foi nesse local que a tripulação de Pedro Álvares Cabral fez a primeira parada no país, em abril de 1500. No entanto, após 523 anos, os povos originários da região ainda precisam defender e reivindicar o direito aos seus territórios. O processo de retomada pelo povo Pataxó vem sendo marcado por intensos conflitos com fazendeiros, grileiros e empresários que disputam a posse das terras indígenas para o agronegócio e especulação imobiliária pelo setor hoteleiro.

Desde junho do ano passado, ao menos sete indígenas foram assassinados, entre eles o adolescente Gustavo Pataxó, de 14 anos, Nawir Brito de Jesus, 16, e o jovem Samuel Cristiano do Amor Divino, 21. "A terra é nossa carne, a água é nosso sangue e a mata é nosso espírito", diz o cacique Mãdy Pataxó.

Segundo ele, os indígenas estão "esperando há décadas" pelo processo de demarcação das terras e, por causa da "morosidade e descaracterização da TI", as comunidades originárias decidiram retomar a região e estão sendo reprimidos pelas forças policiais, milícias e fazendeiros locais.

Pela Constituição Federal, é dever da União demarcar territórios indígenas. Esse processo tem sete fases: estudos de identificação, aprovação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), contestações, declaração de limites, demarcação dos limites, demarcação física, homologação e registro. Portanto, os povos originários da região reivindicam pela conclusão do procedimento demarcatório. "Durante essa semana, tomamos conhecimento de quatro decisões de reintegração de posse para retirar os Pataxó das áreas de retomada. As medidas jurídicas cabíveis foram tomadas e estamos aguardando", conta a advogada Lethicia Reis, do Conselho Indigenista Missionário.

A Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal está com processo de demarcação aberto desde 2000 e aguarda a assinatura da portaria declatória, cuja competência agora é do Ministério dos Povos Indígenas. Já a TI Comexatibá está numa fase anterior da homologação. "Teve o relatório de delimitação publicado em 2015 e aguarda, desde então, a análise das contestações de quem é contrário à demarcação", explicou Lethicia.

Terra Indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal no ponto superior. TI Águas Belas no ponto do meio. TI Comexatibá no ponto de baixo
Terra Indígena (TI) Barra Velha do Monte Pascoal no ponto superior. TI Águas Belas no ponto do meio. TI Comexatibá no ponto de baixo (foto: Reprodução/Instituto Socioambiental)

De acordo com o cacique Mãdy, o agronegócio é forte na região e as atividades promovidas pelo setor estão afetando o meio ambiente. Ao Correio, o líder indígena ressalta que a demarcação das terras, além de acabar com a insegurança jurídica que abre espaço para conflitos territoriais, garantiria o "equilíbrio com a natureza e fortaleceria a transmissão do conhecimento originário de geração e geração".

Denúncias

O cacique Mãdy e a advogada Lethicia Reis, que trabalha com o povo Pataxó, afirmam que há integrantes das forças policiais que estão aliados aos fazendeiros. "A Polícia Militar, historicamente, é violenta com o povo Pataxó", denuncia o cacique. Em fevereiro deste ano, o policial militar Laércio Maia Santos foi preso sob a suspeita de matar dois indígenas da etnia.

A Secretaria de Segurança Pública do estado informou que as apurações apontaram que o oficial foi contratado por ruralistas da região, em uma espécie de "segurança privada". Além disso, em outubro do ano passado, três policiais foram presos durante a Operação Tupã, da Polícia Federal (PF). Ainda segundo a Secretaria, os casos estão sendo investigados pelas forças estadual e federal. "Porém, todas as investigações que levariam aos mandantes parecem parar nas prisões de curto prazo dos executores dos homicídios encomendados", afirma Mãdy.

As lideranças indígenas locais cobram a presença da Força Nacional nas operações na região. A força-tarefa instaurada no local é composta pelas Polícias Civil e Militar do estado e, recentemente, pela Polícia Federal. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) também está envolvida, especialmente no gabinete de crise que foi criado pelo Ministério dos Povos Indígenas em janeiro deste ano.

Cooptação

Segundo uma fonte ouvida pelo jornal, um dos caciques, junto com a família, se aliou aos fazendeiros da região. Esse líder acusa os envolvidos no processo de retomada de "falsos indígenas". De acordo com a advogada Lethicia, ainda não se sabe como foi o processo de cooptação do cacique Baia, da comunidade de Águas Belas — que já teve o processo demarcatório concluído. "Entendemos que é um processo de coerção, possivelmente ele está sofrendo alguma pressão do agronegócio ou do setor hoteleiro, que são fortes na região", diz a especialista.

Para Mãdy, o cacique Baia não quer diálogo com as outras lideranças indígenas do local e atua como "pivô para desmobilizar o movimento de retomada". "Os fazendeiros têm instigado quem não faz o processo de retomada a ficar do lado deles", conta o cacique da Terra Indígena Comexatibá. 

A Defensoria Pública da Bahia repudiou, em nota, as acusações de invasões de terras por lideranças indígenas do povo Pataxó, pois "criminalizam o legítimo processo de retomada do território, cujo processo de demarcação já encontra-se em fase avançada perante os órgãos competentes e com finalização prevista".

O Correio tentou contato com o cacique Baia, mas ainda não obteve retorno. O jornal também não conseguiu localizar o policial militar Laércio Maia Santos, que foi citado na matéria.

Proteção do povo Pataxó

Em janeiro, a ministra Sonia Guajajara disse que são "inadmissíveis" os ataques sofridos pelos povos indígenas da região. “É inadmissível que os povos indígenas continuem sendo perseguidos e ameaçados dentro de seus próprios territórios. Este crime não pode ficar impune e, por isso, trabalharemos junto ao Ministério da Justiça e aos demais órgãos e entidades para garantir a rigorosa investigação e punição dos criminosos, além, é claro, da proteção do povo Pataxó”, advertiu, em nota, a ministra.

Além da agilidade nas demarcações de terras, as lideranças do povo Pataxó cobram que o Marco Temporal seja julgado e extinto pelo Supremo Tribunal Federal. Defendido por ruralistas e setores políticos interessados na exploração de reservas indígenas, a tese define que as etnias só tenham direito a reivindicar terras que ocupavam antes da Constituição de 1988. "Como se os povos originários não vivessem aqui desde muito antes de 1500", critica o cacique Mãdy.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação

CONTINUE LENDO SOBRE