Escravidão

173 anos da Lei Eusébio de Queirós: entenda o que foi a medida

Especialista explica que a lei teve um impacto mais gradual e lento, pois não proibiu a escravidão no país de fato. A promulgação ocorreu por pressão internacional

Antes da assinautura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas -  (crédito: Caio Gomez)
Antes da assinautura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas - (crédito: Caio Gomez)
Aline Gouveia
postado em 04/09/2023 14:10

A lei que proibiu o tráfico transatlântico de pessoas escravizadas na África para o Brasil completa 173 anos nesta segunda-feira (4/9). Denominada como Eusébio de Queirós — nome do então ministro da Justiça e autor da norma — a lei foi promulgada em 4 de setembro de 1850, fruto de pressão internacional. O doutor em direito pela Universidade de Brasília (UnB) Gianmarco Loures Ferreira explica que a medida teve um impacto mais gradual, pois não proibiu a escravidão no país de fato. Antes da assinatura da lei Áurea, em 3 de maio de 1888, cerca de seis leis abolicionistas foram sancionadas. A lei Eusébio de Queirós é uma das primeiras desse processo.

A lei que proibiu o tráfico internacional de escravizados da África para o Brasil recebeu o nome de Eusébio de Queirós — então ministro da Justiça
A lei que proibiu o tráfico internacional de escravizados da África para o Brasil recebeu o nome de Eusébio de Queirós — então ministro da Justiça (foto: Reprodução/Wikipedia)

"A edição dessa lei é uma resposta à pressão internacional, principalmente da Inglaterra, que já havia proibido o tráfico de pessoas escravizadas desde 1807, por navios ingleses, depois reforçando a proibição para colônias inglesas em 1833 e, culminando com a proibição do tráfico transatlântico em 1845, pela Bill Aberdeen. Como a Lei Eusébio de Queirós atendia a pressão inglesa, mas não era efetivamente cumprida ou fiscalizadas, faz-se a ela a menção de ter sido uma 'lei para inglês ver', ou seja, formalmente vigente, mas não efetiva, uma vez que o tráfico interno, de áreas menos produtivas, para áreas mais produtivas continuou a todo vapor, por pelo menos os próximos 30 anos", explica o especialista e membro do Respeitar - Centro de Referência em governança para a equidade, antidiscriminação e sustentabilidade social.

Gianmarco destaca que o fim do tráfico internacional não ocorreu por questões humanitárias, mas sim por receio de revoltas populares, além da pressão de outros países. "Proibia-se o tráfico internacional de pessoas escravizadas, mas, nem tocava no tráfico interno, nem na própria exploração da mão-de-obra escravizada, essa destinada ao Estado Brasileiro. Por fim, é preciso pontuar o contexto em que surge a lei. Estamos em plena época da Revolução Haitiana e Revolta dos Malês. Ou seja, havia uma preocupação em se tentar, de alguma forma, pacificar os ânimos, ao mesmo tempo em que aumentar o contingente populacional não-negro. Não tanto por razões humanitárias, mas muito fundada no 'medo negro' e numa inicial transição para o trabalho livre, que viria a ser ocupado pela imigração europeia incentivada", pontua.

Falta de efetividade 

Segundo Gianmarco, a falta de efetividade é uma das características das leis abolicionistas surgidas no período imperial no Brasil. Nesse sentido, a lei Eusébio de Queirós foi instaurada mais como uma forma de flexibilização da escravidão, e não como o fim do regime. A preocupação com a libertação e direitos das pessoas escravizadas dava lugar à manutenção do status quo e preservação das elites com domínio econômico. "Ainda hoje, ao se olhar as dificuldades de aplicação de uma lei de cotas na educação ou no serviço público, por exemplo, vê-se essa baixa institucionalização do direito. Há uma previsão legal, mas os obstáculos para que seja plenamente aplicada e uma resistência decorrente do racismo estrutural tornam o arcabouço normativo muito pouco efetivo, ante uma cultura ainda muito reacionária e refratária a um ideal de nação mais diverso", reflete o doutor em direito.

O especialista cita o exemplo de outras normas abolicionistas, como as leis ventre livre e a dos sexagenários, para ilustrar a ideia de que esses mecanismos legais tiveram pouca efetividade prática. Até mesmo a lei Áurea, que foi um importante marco para o fim da escravidão, não assegurou a devida proteção e assistência aos recém-libertos, com poucas possibilidades de estudo e trabalho, por exemplo. A escravidão durou 388 anos no Brasil, sendo que as principais atividades econômicas do país, como a extração de ouro, cana-de-açúcar, criação de gado e plantação de café, estiveram ligadas ao trabalho escravo.

Impactos atuais

Para Gianmarco, apesar dos avanços, a abordagem da questão racial no Brasil ainda é pouco efetiva, pois é focada na discriminação individual e isolada. "Falta, de modo geral, uma concepção mais ampla da necessidade de uma cultura institucional que vá além de tentar evitar o preconceito racial nos processos seletivos, por exemplo. Há todo um olhar para se pensar em inserir pessoas negras em determinados espaços, mas há muito pouco debate a respeito do que significa, efetivamente, uma administração democrática e antidiscriminatória, em que o acesso a outros espaços mais elitizados estejam disponíveis a grupos minorizados, como a população negra. É preciso avançar na diversidade, no estabelecimento de parâmetros que denunciem a suposta neutralidade que favorece sempre um mesmo grupo social. É preciso falar em diversidade, em representatividade e acima de tudo, em combate a desigualdade.", ressalta o especialista.

 

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