ANÁLISE

Alexandre Garcia: Rio Grande do Sul tem uma população resiliente

o rio Grande do Sul tem uma população resiliente. Esta catástrofe abate, mas não derrota. Ninguém desiste. Os embates forjam o gaúcho. Esta enchente é mais um desafio a ser enfrentado. Ninguém no Rio Grande é escravo do clima, fdo governo ou do que quer se seja

Pátio da casa onde Taciane mora -  (crédito: Arquivo Pessoal/Taciane de Freitas Lopes)
Pátio da casa onde Taciane mora - (crédito: Arquivo Pessoal/Taciane de Freitas Lopes)

A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado acaba de aprovar o projeto de criação da Política Nacional de Gestão Integral de Riscos de Desastres, que prevê um Sistema Nacional para isso. Só que isso já existe. O Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, previsto em lei federal de 2012, espera para ser posto em prática há 12 anos. Quantas vidas e prejuízos poderiam ser poupados? Voluntários no Rio Grande do Sul apelam para que esta catástrofe sirva para prevenir e abrandar os efeitos da próxima cheia. Todos sabem que vai haver outra e mais outra. Eu mesmo vivi isso durante metade de minha vida, morando na margem esquerda do Rio Jacuí e, depois, nas duas margens do Rio Taquari. Todos os anos há enchentes, algumas devastadoras como foi a de 1941, nos mesmos dias de maio, comprovando a regularidade do ciclo. A diferença é que hoje há mais gente morando em áreas alcançadas pelo transbordamento dos rios. Todos os anos, nuvens carregadas de umidade quente da Amazônia — um oceano voador — se chocam sobre o Rio Grande, com o ar frio vindo da Patagônia. Aí, a umidade se condensa e escorre como na parte externa de um copo com água muito fria. A água cai das nuvens e segue as ordens da gravidade. Aprendi isso desde a infância. Remei muito “caiaque” na minha rua e no quintal de nossa casa.

Assim, isso é cíclico, portanto, previsível. Este ano, o choque de frio com calor úmido sobre o estado de clima temperado foi intenso, e um aviso fora dado em setembro, com as águas do Taquari subindo 30 metros em uma noite. O que é cíclico não é excepcional. Há, pois, a obrigação das autoridades de terem planos preventivos, com potencial de mobilização — como um exército que tem que estar sempre pronto para a guerra. Não é impossível saber para onde vai a água quando ela extravasa a calha de um rio. Não é impossível saber quando uma encosta se torna um risco. Não é impossível extrapolar a cota de uma inundação na hora de licenciar construções. Não é impossível prever e emitir aviso de chuvas torrenciais. Não é impossível fiscalizar as empreiteiras para garantir resistência de pontes e rodovias. Não é impossível corrigir o assoreamento dos rios com dragagem. Não é impossível, e é obrigação do Estado, que existe para também preservar vidas e patrimônio do povo a que serve

Quando o Estado não previne, remediar é que é impossível. Não se recuperam vidas perdidas. Nem colheita, gado, móveis, imóveis arrastados, destruídos. O Rio Grande vem de três anos de secas que prejudicaram as safras; agora é o excesso d’água. Além da natureza, há os aproveitadores, vigaristas, bandidos. Saqueadores roubam embarcações que estão resgatando gente, animais e bens, saqueiam as casas semi-submersas. Criam-se contas de doações que só beneficiam o dono do pix. Como em setembro, desviam doações. O governo federal anunciou R$ 614 milhões de emendas para a saúde no Rio Grande. Num só dia da semana passada, o presidente liberou R$ 4,9 bilhões de emendas para seduzir parlamentares. Ainda comparando valores: o ministro Dias Toffoli, do Supremo, dispensou a Odebrecht e a J & S dos 15 bilhões dos acordos feitos na Lava-Jato.

O Rio Grande do Sul tem uma população resiliente. Esta catástrofe abate, mas não derrota. Ninguém desiste. Os embates forjaram o gaúcho. Esta enchente é mais um desafio a ser enfrentado. Ninguém no Rio Grande é escravo do clima, do governo ou do que quer que seja. Liberdade e iniciativa entraram na medula, gerados pelos mais variados entreveros nos últimos séculos, misturando sangue de charruas, minuanos, guaranis, espanhóis, portugueses, depois alemães, italianos, sírio-libaneses, e forjaram uma têmpera de lâmina de aço e cabo de prata. É um povo que canta seu hino como um lema; um hino que ensina que para ser livre não basta ser bravo, aguerrido e forte; é preciso ter virtude. Na catástrofe, a rede de solidariedade é impressionante, revelando as virtudes desse povo. E, entre uma e outra catástrofe, a falta da virtude de prevenção, do Estado brasileiro.

 

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postado em 08/05/2024 04:53
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