literatura

Adélia Prado: A poeta desdobrável

Rumo aos 90 anos, ela finaliza novo livro, ganha reedições caprichadas e reage a comentários no Instagram: "Sinal de que a poesia andou com as próprias pernas e não precisa mais de mim", afirma

Adélia Prado -  (crédito: Divulgação)
Adélia Prado - (crédito: Divulgação)

"O que sinto escrevo. Cumpro a sina." A sentença exposta em "Com licença poética", poema inicial de Bagagem, anunciava o nascimento de uma escritora capaz de traduzir em versos os frêmitos do corpo e a inquietude da alma. Indicado por Carlos Drummond de Andrade ao editor Pedro Paulo de Sena Madureira, o primeiro livro de Adélia Prado foi publicado em 1976.

Nascida em Divinópolis, em 1935, Adélia chega aos 90 anos em 13 de dezembro com quatro reedições de títulos importantes de sua obra. Mais: a editora Record espera publicar, até o fim do ano, um novo livro da escritora. Em entrevista aos Diários Associados, Adélia confirma que há um inédito a caminho.

"O livro que estou escrevendo chegou através de gavetas fechadas há muito tempo. Os manuscritos me apanharam no mesmo lugar, apenas continuei a escrever", conta, por e-mail, revelando, ainda, como atravessou o que chama de "deserto criativo": "Implorando pela misericórdia divina, que não me faltou, mas importante dizer, também, que tive a ajuda de algumas pílulas e sessões de análise".

Enquanto ela termina de selecionar os poemas para o livro novo, as livrarias recebem edições caprichadas de Bagagem, Terra de Santa Cruz, O pelicano e O Homem da Mão Seca, originalmente lançados entre as décadas de 1970 e 1990. As capas, assinadas pelo premiado designer Leonardo Iaccarino, reproduzem obras da artista plástica carioca Manoela Monteiro.

"A nova identidade visual apresenta uma linguagem mais abstrata. Esse aspecto mais aberto/interativo traz um frescor para a obra da autora. Tive a sensação de que a abstração poética das obras de Manoela Monteiro, de alguma forma, encaixava com o lirismo da obra da Adélia. Nesse sentido, as artes são um convite reflexivo que complementam a escrita", afirma Iaccarino.

Lançado em 1976, Bagagem continua sendo o maior êxito comercial da autora. São 48 edições de uma poética "cheia de espanto", que dialoga com o Drummond de Poema de sete faces nos versos "Vai ser coxo na vida é maldição pra homem. Mulher é desdobrável. Eu sou"; reverencia Guimarães Rosa ("Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão"); e apresenta aos leitores uma conversa íntima e única entre o sagrado e o profano, às vezes no mesmo poema.

Além de Bagagem, a Record reedita outros dois livros de poesia: Terra de Santa Cruz e O pelicano. Neste último, publicado em 1987, a autora introduz um personagem, Jonathan, que perpassa diversos poemas e pode ser lido, como aponta o texto de apresentação, como "um Godot beckettiano, onipresente, a própria poesia, mas também o sagrado, o desejo, o amor." Jonathan está nos versos finais do arrepiante "O nascimento do poema", um dos momentos mais fortes do livro.

A primeira leva de reedições se completa com um romance. O Homem da Mão Seca, publicado pela primeira vez em 1994, traz como protagonista uma mulher obcecada por Deus ("Meu amor por Vós é um pranto", "Vou escrever poéticas para Vosso deleite"), atormentada por uma dor na boca ("O universo inteiro, Deus incluído, é este ponto doloroso no meu dente") e por questões existenciais ("O que me faz mais humana? Mansidão ou desespero frente a meu destino?").

"É um livro muito especial para mim", afirma Adélia. "Ao escrever esse livro, descobri que era eu o homem da mão seca, o que foi motivo de muita dor, mas também de salvação."

As reedições chegam quando Adélia, sem aparições públicas depois de enfrentar problemas de saúde na família, reencontra leitores por meio das redes sociais. O perfil @euadeliaprado, no instagram, compartilha vídeos da escritora lendo alguns de seus poemas favoritos. "Que vocês sejam inundados pelo amor que me transmitem", diz Adélia, no vídeo de agradecimento pelos prêmios Machado de Assis (Academia Brasileira de Letras) e Camões, a maior honraria da língua portuguesa.

"A página foi idealizada por Mila Couri, uma amiga muito amada, e logo aceita pela Adélia, que tinha muitas saudades de seus leitores, dos encontros e da troca", conta Ana Prado, filha da escritora. "Os leitores sempre foram muito generosos e ela sentiu que seria uma forma de retribuir e receber o calor deles. E ela sempre amou falar seus poemas", lembra Ana, que grava e edita os vídeos com Mila.

"Mas (os vídeos) passam sempre pelo crivo dela (Adélia), que escolhe os poemas. O tempo de postagem também é o dela, o que seus seguidores compreendem. Ela mesma se considera analógica e essa compreensão de todos a deixou muito à vontade. Ela fica muito feliz e se diverte com os comentários. Lê todos. Foi realmente algo que a deixou muito entusiasmada", revela Ana Prado.

É uma forma de Adélia retomar um contato marcado pelo afeto e respeito. Afonso Borges, criador do projeto "Sempre Um Papo", conta que a história do evento se confunde com a trajetória da escritora. "Sua primeira participação, em 1987, no saudoso Cabaré Mineiro, é lembrada pela explosão de público. Tinha gente pendurada na estrutura metálica do teto. E o silêncio absoluto? Não se ouvia um mosquito voando, além de sua voz", recorda o produtor cultural.

Borges acredita que, nos encontros públicos, a construção das ideias de Adélia se dá além da poesia. "Eu perguntava pouco — sabia que Adélia aceitava meu convite quando tinha o que dizer. Melhor: ela sabia o que dizer, e a hora certa. Até no momento mais polêmico, o pedido de oração em um Palácio das Artes com mais de duas mil pessoas, repercute até hoje. Sim, Adélia sabe, e sempre soube, que poesia é política. Por isso, esta mulher extraordinária valoriza o silêncio", afirma. "Da minha parte, fico sempre na espera. Ela sabe a hora."

E, novamente, chegou a hora de ler e reler Adélia Prado. Porque, como ela própria nos mostrou com os alumbramentos reunidos em Bagagem, às vezes "dá até de escurecer de repente com trovoada e raio". Mas muito maior que a morte é a vida. E o que a memória ama fica eterno.

Poesia, "deserto criativo", Minas, Deus...

O que você destacaria nos quatro livros que acabam de ser reeditados: Bagagem, Terra de Santa Cruz, O Pelicano e O Homem da Mão Seca?

Relendo os livros, vejo que os escreveria do mesmo jeito. Nada a acrescentar ou retirar, portanto, prontos para serem reeditados.

Quais as recordações mais marcantes do lançamento de Bagagem?

A presença de meus ídolos literários e amigos amados.

Drummond afirmava que sua poesia é "lírica, bíblica, existencial". Com qual dessas características mais se identifica ou há outra que supera todas as citadas?

A lírica é sine qua non. A Bíblia é um manancial. Pode imaginar como me senti. E, quanto a ser existencial, não tenho também como fugir, uma categoria fundamental. Me identifico com todas.

O que a levou a escrever O Homem da Mão Seca? O que é mais fácil de dizer na prosa do que na poesia?

Ao escrever esse livro, descobri que era eu o homem da mão seca, o que foi motivo de muita dor, mas também de salvação. É um livro muito especial para mim. Não acredito que haja qualquer tipo de facilidade atrelada ao gênero literário. A dor do nascimento será igual.

Em O Homem da Mão Seca, você cita o Livro de Jó e narra a história de uma mulher do interior que "mistura Deus em tudo". Acredita que, em seus livros, também há sempre uma mistura de Deus com tudo que escreve e ele acaba sendo, como disse em vídeo recente, "o autor real das coisas"?

Sim, acredito. Em minha escrita não há como alijar Deus, que é o objeto maior de minhas inquietações. Comecei a escrever O Homem da Mão Seca e, depois de um tempo, empaquei. Tive então meu primeiro deserto criativo. Foi necessário, mas muito difícil de atravessar. O Livro de Jó foi um paralelo inevitável.

Qual o seu santo de devoção e qual sua oração de maior predileção?

Santo Antônio e São Francisco. Minha oração de cabeceira é o Salmo 50.

Em "Cacos para um Vitral", de Terra de Santa Cruz, você escreve os seguintes versos: "Tenho os mesmos desejos de trinta anos atrás, / imutáveis como os mosquitos na cozinha ensolarada, / minha mãe fazendo café / e meu pai sentado, esperando." Com o tempo, quais desejos mudaram e os que permanecem como os de 30, de 60 anos atrás?

Os desejos são os mesmos, só que em mais vasta profundidade.

Em "Limites", também em Terra de Santa Cruz, você escreve que "possuía uma história, / contínua, desde o meu nascimento indesligável de mim". Nessa história contínua, acredita que haja uma ligação entre todos os seus livros? Como se dá a conexão entre eles?

Acredito que o autor escreve sempre o mesmo livro. Trata-se de uma única vida, uma única pessoa, uma única memória. No tempo cósmico escrevemos um único poema.

Como fez a travessia do "deserto criativo" e chegou ao novo livro?

Na verdade, vivi essa experiência por duas vezes. Atravessei esses desertos implorando pela misericórdia divina, que não me faltou, mas importante dizer também que tive a ajuda de algumas pílulas e sessões de análise (risos). O livro que estou escrevendo chegou através de gavetas fechadas há muito tempo. Os manuscritos me apanharam no mesmo lugar, apenas continuei a escrever.

O que mais gosta de fazer atualmente? E o que mais a incomoda?

Estou vendo pela segunda vez a série The Chosen/Os Escolhidos. Jonathan Roumie (ator que interpreta Jesus Cristo na série) é encantador! Sobre incômodos, nunca superei minha intolerância a barulhos. Ruídos são insuportáveis.

Quais as recordações da infância e da juventude que guarda até hoje?

Nossa, são tantas! Tive a sorte de ter tido uma infância muito feliz. Está gravada como uma experiência de conforto, sempre retorno a ela.

Sem Divinópolis, sem Minas, não haveria a sua poesia?

A minha, não, pois faz parte de quem sou.

Como reage quando vê seus leitores fazendo vídeos nas redes sociais citando seus poemas?

Com uma alegria imensa. Sinal de que a poesia andou com as próprias pernas e não precisa mais de mim. O que escrevo pertence a todos.

 

Carlos Marcelo
CM
postado em 15/02/2025 03:55 / atualizado em 15/02/2025 08:06
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