Mudanças no PAT podem comprometer a entrega da alimentação ao trabalhador

Setor de benefícios alerta para riscos de desvio de finalidade e de enfraquecimento da política pública que há cinco décadas contribui para a saúde e a nutrição de milhões de brasileiros

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postado em 18/12/2025 00:00
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Matéria escrita por Gabriella Collodetti, jornalista do CB Brands, estúdio de conteúdo do Correio Braziliense

Há quase 50 anos, o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) cumpre um papel estratégico na promoção da segurança alimentar e, consequentemente, da saúde e da produtividade de milhões de trabalhadores brasileiros. Viabilizado por um ecossistema eficiente de empresas especializadas em benefícios, a iniciativa tornou-se uma das mais bem-sucedidas políticas públicas de alimentação do país, combinando incentivo fiscal, controle do uso dos recursos e capilaridade nacional.

Na prática, o PAT funciona por meio da adesão voluntária das empresas, que passam a oferecer benefícios como vale-refeição (VR), vale-alimentação (VA) ou refeições no próprio local de trabalho, por meio de refeitórios. Esses benefícios são concedidos com custos reduzidos para os empregados, ampliando o acesso a uma alimentação adequada e equilibrada ao longo da jornada laboral.

No entanto, a Associação Brasileira das Empresas de Benefícios ao Trabalhador (ABBT) alerta que esse arranjo está sob forte ameaça após a publicação do decreto nº 12.712/2025, sancionado no mês de novembro, que promove mudanças profundas nas regras dos vales- refeição e alimentação. “O risco maior é transformar um programa de alimentação, com controles específicos e finalidade claramente definida, em uma plataforma de meios de pagamentos”, afirma Lucio Capelletto, presidente da entidade.

Isso porque, entre as alterações, é imposto um arranjo aberto sem observar as premissas originais da operação nos processos de credenciamento e monitoramento. A preocupação, segundo Capelletto, diz respeito ao fato de que, no arranjo aberto, são permitidos múltiplos participantes sem regras setoriais, o que tende a desmantelar mecanismos de controle que hoje garantem monitoramento e fiscalização atuantes, evidenciados pelo descredenciamento de cerca de 3.500 estabelecimentos por ano por uso indevido como a venda do benefício com deságio e o uso para compra de produtos não alimentícios. Sem esse controle, o programa fica mais vulnerável e o trabalhador, menos protegido.

“A possibilidade de uso dos vales em estabelecimentos comerciais credenciados por qualquer adquirente tende a desvirtuar a finalidade do PAT, caso não seja implementado mecanismos de monitoramento e fiscalização eficazes. O impacto no faturamento de estabelecimentos credenciados que comercializam refeições deverá ser significativo, pois com o aumento de estabelecimentos credenciados sob critérios menos rigorosos haverá migração do uso para uma ampla variedade de produtos não necessariamente destinados à alimentação”, explica o executivo.

Sobre esse aspecto, o advogado e professor Celso Fernandes Campilongo, da Faculdade de Direito da USP e da PUC-SP, é categórico ao afirmar que, mesmo no arranjo aberto, é indispensável que o gasto se dê apenas em aporte nutricional do trabalhador, ou seja, com a compra de refeições e alimentos. Não é dado ao trabalhador custear, a partir do benefício, despesas com escolaridade, ginástica, combustível ou transporte, ainda que necessárias ao trabalho. Neste ponto, nada mudou com a nova legislação”, reforça.

Além desse ponto crítico, as alterações impostas pelo decreto representam um grande desafio operacional e contratual para as empresas do setor. Elas exigem reconfiguração de políticas internas, revisão de contratos com credenciadoras e ajustes nos controles de operações indevidas. “Não se trata de uma mudança simples: é necessária uma reengenharia completa, com testes integrados e migração cuidadosa. Com prazos curtos para a implementação, há risco concreto de instabilidade, erros em escala e até mesmo de descontinuidade do serviço com impacto direto na entrega da alimentação ao trabalhador”, complementa Capelletto.

Outro ponto de grande preocupação é o impacto econômico e social das mudanças impostas. Com a abertura do arranjo, as 514 empresas autorizadas a funcionar – de diferentes portes e distribuídas regionalmente, o que garante a utilização do benefício em todo o país — correm risco de deixar o mercado. Muitas dessas empresas de menor porte atuam junto a cerca de 2.500 municípios com mais de 4,5 milhões de colaboradores do setor público e serão fortemente impactadas pelo descasamento entre o prazo de reembolso aos comerciantes — reduzido para 15 dias — e os prazos de recebimento do mercado de licitações, que variam entre 30 e 60 dias.

Além disso, os prazos de implantação de 90, 180 e 360 definidos pelo decreto são considerados incompatíveis com a complexidade técnica, operacional e contratual das transformações exigidas. Para o setor, a combinação de insegurança jurídica, risco empresarial e prazos irrealistas pode desvirtuar a função do PAT a médio e longo prazo, afastando-o de sua finalidade original: assegurar alimentação adequada e saúde ao trabalhador brasileiro.

Somado a isso, para as empresas que contratam o benefício, a mudança traz incerteza operacional, risco de aumento de custos e potencial perda da essência do PAT, dado que o benefício não deve ser tratado como renda disponível, mas como um instrumento para garantir refeição nutritiva e saudável. “O PAT sempre foi um instrumento de saúde e produtividade, portanto qualquer alteração precisa considerar os reflexos na gestão de pessoas”, avalia Capelletto.

Impacto econômico e insegurança jurídica

Um ponto defendido no anúncio do decreto — a redução do preço da alimentação para o público final, decorrente da redução da taxa para 3,6% — não encontra respaldo em estudos, pesquisas ou cálculos oficiais divulgados até o momento. Especialistas do setor apontam que os preços dos alimentos são fortemente influenciados por fatores macroeconômicos, como commodities agrícolas, custos logísticos e inflação, o que tende a diluir eventuais ganhos decorrentes de tetos para taxas administrativas.

Segundo explica Edson Fávero, professor CEO da consultoria de inteligência de mercado UIN, que aplicou a metodologia de teste de estresse econômico para avaliar o efeito da nova regulação de VR/VA, não há correlação estatística comprovada entre a redução da taxa e a queda nos preços da refeição ou da cesta alimentar. “Apesar de a nova regulação buscar maior eficiência e competitividade dentro da cadeia de meios de pagamento, não possui conexão causal com o preço ao consumidor final. Para o governo, a medida não é inflacionária, mas tampouco produz desinflação. Para o consumidor, não haverá alteração perceptível no custo de vida alimentar. E, para o setor, a economia é interna e serve para recomposição de fluxo de caixa e sobrevivência operacional”.

A ausência de Análise de Impacto Regulatório (AIR), exigida pela Lei nº 13.848/2019 e pela Lei nº 9.784/1999 para mudanças dessa magnitude, também agrava o cenário. Caso a AIR não tenha sido realizada, o decreto pode afrontar princípios de previsibilidade e racionalidade econômica que devem orientar a atuação regulatória do Estado. "É um cenário que traz incertezas sobre o impacto da regulação e que poderá pressionar a sustentabilidade do setor", destaca.

Colaboração entre poder público e setor

Diante desse cenário, a ABBT defende um debate técnico que assegure mudanças sem comprometer a qualidade do serviço nem a solidez do ecossistema, com colaboração entre o poder público e o setor de benefícios para a construção de soluções que preservem o papel social do PAT e mitiguem riscos econômicos e jurídicos. O decreto instituiu um Comitê Gestor Interministerial, mas a ausência de regras claras sobre seu funcionamento gera apreensão adicional no mercado.

“A sustentabilidade do PAT precisa ser garantida por meio de uma construção conjunta, assegurando que o programa continue cumprindo, de forma plena e íntegra, seu papel social para os trabalhadores”, afirma Capelletto. “Sem uma comunicação aberta e construtiva, há risco significativo de desestruturação do sistema, com prejuízos à qualidade da alimentação oferecida e, em última instância, o comprometimento de um modelo que beneficia milhões de trabalhadores há décadas. As empresas do setor estão disponíveis para contribuir com a melhor solução técnica, que garanta viabilidade de implementação, qualidade dos serviços e solidez de todo o ecossistema”, defende.

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