Violência

Crimes contra dignidade sexual de jovens e adolescentes aumentam 29,6%

De acordo com dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação, no primeiro semestre, houve aumento de 29,6% no registro de crimes contra a dignidade sexual de pessoas até os 17 anos de idade, em comparação ao mesmo período de 2019, no DF

Alan Rios
Thais Umbelino
postado em 17/10/2020 07:00
 (crédito: Editoria de ilustração)
(crédito: Editoria de ilustração)

Medo, trauma e insegurança ocupam o lugar de inocência, amor e proteção. Essa é a realidade enfrentada por crianças e adolescentes que constam nas estatísticas trágicas de vítimas de crimes contra a dignidade sexual. Os números cresceram substancialmente no Distrito Federal neste ano. Dados obtidos via Lei de Acesso à Informação pelo Correio mostram que, no primeiro semestre, houve aumento de 29,6% desses crimes contra menores de 18 anos, comparado ao mesmo período de 2019 — passando de 246 para 319. Documentos revelam o crescimento de ocorrências de violência sexual em todos os quatro grupos de faixas etárias analisados, até os 17 anos. Entre vítimas de até cinco anos, por exemplo, observou-se 57 registros nos primeiros seis meses deste ano, 137% a mais em paralelo ao mesmo recorte de tempo do ano passado.

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ilustração (foto: Editoria de ilustração)

A faixa etária com maior número de casos foi o grupo de 12 a 15 anos, com 113 vítimas. Janaína (nome fictício), 13 anos, é uma delas. Criança cheia de vida e alegre, que amava brincar e sonhava em ser professora, teve que deixar os brinquedos de lado para encarar a realidade de ser mãe. Janaína foi estuprada por um homem de 57 anos, violência que mudou para sempre a vida dela. Por motivos religiosos, a família decidiu que a criança teria o filho. Além de uma gravidez indesejada, Janaína perdeu a vontade de sair com os amigos e de brincar. “É uma criança cuidando de outra. Ela passou por uma situação bem complicada. Assumiu toda a responsabilidade de mãe e abdicou da infância. Hoje, a rotina dela é totalmente voltada para cuidar do filho”, conta o pai da vítima, 35.

O abuso aconteceu onde a mãe da menina trabalhava, praticado pelo patrão. Ela era cozinheira e levava a menina ao restaurante para não deixá-la sozinha em casa. Em depoimento, à época, a responsável declarou que o homem considerava a filha dela como uma neta. “Ele oferecia presentes e era prestativo. Ao término da relação de trabalho, ele continuava a visitar a família alegando querer notícias da minha filha”, lembra a mãe de Janaína, 42. Depois de um tempo, a garota começou a agir de forma estranha e, ao notar que o ciclo menstrual da filha estava atrasado, a mãe desconfiou de uma possível gravidez. Em conversa com a criança, ela descobriu que o agressor a obrigou manter relações sexuais com ele, sob ameaça de colocar ela e a irmã, de 9 anos, em um abrigo, longe dos pais.

“Desde então, ela (Janaina) começou a agir de maneira introspectiva, cada vez mais distante e triste. Não sai de casa para nada e não quer voltar a estudar. Ela nunca mais voltou a ser a mesma”, lamenta o pai. O caso é investigado pela 26ª Delegacia de Polícia (Samambaia). “O suspeito está foragido, por força de mandado de prisão preventiva expedido pela Segunda Vara Criminal de Samambaia. Não há atualização sobre o caso até o momento”, informou a Divisão de Comunicação da Polícia Civil (Divicom), em nota oficial.

Políticas públicas

No DF, há três unidades policiais especializadas em atender a ocorrências envolvendo a parcela da polução até os 17 anos: a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e as delegacias da Criança e do Adolescente I e II. No entendimento de quem atua nessas instalações, a pandemia deixou crianças e adolescentes mais vulreváveis. “Há essa violência sexual intrafamiliar em muitos lares, porque os agressores e as vítimas estão em maior convívio e ficaram confinados. Sem contar que as crianças estão tendo mais contato com a internet, muitas vezes sem supervisão, o que abre espaço para a pedofilia. Antes, nós tínhamos uma porta de entrada a esses casos com as escolas, mas, com elas fechadas, muitas vezes não é possível identificar. Então, ainda existe uma subnotificação imensa”, comenta a delegada da DPCA Ana Cristina Santiago.

A violência, segundo a delegada, é praticada conforme ser dá a proximidade dos abusadores com as vítimas. “Temos padrastos, tios, avós praticando esses crimes, que acontecem porque existe essa relação íntima. É uma violência que não se materializa só com penetração. Às vezes, são condutas criminosas que não deixam vestígios”, alerta Ana Cristina. A responsabilidade para observar esse tipo de crime, portanto, cabe a toda a sociedade, principalmente neste período de isolamento social. “Ao encontrar com a criança, deve-se observar se tem algo diferente nela e nos comportamentos. Ela era mais extrovertida e falante e, de repente, está mais calada, retraída e chorosa? Comia e, hoje, não come mais ou está comendo demais? É necessário prestar atenção em caso de ouvir algum grito ou choro, ou ver um roxo ou vermelhidão diferente na pele da criança. Nesse contexto, conselhos tutelares são essenciais para a polícia e para as escolas, porque eles vão entender a situação toda, se alguém precisa de encaminhamento psicossocial, benefício social, isso tudo”, explica a delegada.

Um dos profissionais dessa rede de proteção é Thayline Soares, 29 anos, à frente do Conselho Tutelar 3 de Ceilândia. “Não paramos, trabalhamos diariamente para garantir os direitos dessas crianças, mesmo com elas em casa, conscientizando os pais para protegê-las”, afirma a conselheira. “As pessoas precisam entender que todos nós somos responsáveis por zelar pelos vulneráveis e ter um olhar mais humano para nosso próximo. Precisamos ficar atento aos nossos filhos, vizinhos e ouvir mais a criança para saber o que está se passando e o que estão vivenciando”, destaca Thayline Soares.

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  • Pai de Janaina, vítima de violência: família seguiu com a gravidez
    Pai de Janaina, vítima de violência: família seguiu com a gravidez Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • ilustração
    ilustração Foto: Editoria de ilustração

Desafios da escola

Doutor em educação e ex-secretário da pasta no DF, Rafael Parente ressalta que a escola tem papel fundamental no enfrentamento a crimes contra a dignidade sexual. Por meio de conscientização e acolhimento, as instituições pedagógicas, historicamente, fazem parte de um processo amplo de prevenção e identificação de casos. “A escola é um local onde muitas crianças que passam por abusos e vários tipos de violências sentem-se seguras e a salvo. É um lugar que representa a esperança de que a vida pode ser diferente daquela realidade cruel que crianças e adolescentes testemunham e vivem todos os dias”, avalia.

Rafael considera que está mais desafiador trabalhar essas questões do modo virtual, com aulas remotas, mas que isso é possível. “É muito importante manter o contato com o aluno neste momento, lembrar que tem alguém pensando nele, alguém que se importa, porque ele não sente isso na comunidade ou dentro de casa, mas pode sentir isso do professor”, comenta.

Outro pilar no enfrentamento, na visão do especialista, é ter uma educação que não omita saberes da sexualidade. “Nesta situação da pandemia, a educação sexual precisa ainda mais fazer parte do currículo das escolas. Elas devem se organizar para trabalhar o tema com crianças e adolescentes, com conteúdos e materiais apropriados para cada idade. Para um aluno muito pequeno, ensinar que quando os adultos conversam com ele não é legal que eles toquem em partes íntimas. Isso faz parte da educação sexual”, opina.

Ruth Meire Mota, diretora de Educação do Campo, Direitos Humanos e Diversidade da Secretaria de Educação, diz que a pasta tem se preocupado bastante com as violências sofridas pelos alunos, incluindo a sexual. “Com o isolamento e o confinamento, observamos esse aumento de um modo geral, pelo país todo. Pensando nisso, publicamos um guia elaborado por nós, em parceria com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), para divulgar canais de denúncias e como identificar essas situações”, diz.

Ela acrescenta que a escola é parte de uma grande rede de proteção, muitas vezes atuando até a denúncia, mas que conta com apoio de outras instituições para ir além. “Normalmente, a gente orienta que esse (sexualidade) seja um tema transversal, trabalhado junto com racismo, violência de gênero e outros. Acreditamos que o papel da educação nesse processo tem dois caminhos: o da prevenção, no sentido de fortalecer laços e alcançar a convivência saudável, para que os alunos não sejam adultos que cometam violências; e o fortalecimento, para que sejam capazes de denunciar o que sofrem”, resume.

Denúncia

O Disque 100 funciona diariamente das 8h às 22h, inclusive nos fins de semana e feriados. As denúncias recebidas são analisadas e encaminhadas aos órgãos de proteção, defesa e responsabilização, de acordo com a competência e as atribuições específicas, priorizando o Conselho Tutelar como porta de entrada, no prazo de 24 horas, mantendo em sigilo a identidade da pessoa denunciante. Pode ser acessado por meio dos seguintes canais:

• Discagem direta e gratuita do número 100.

• Denúncia de pornografia na internet por meio do portal www.disque100.gov.br.

• Ligação internacional — fora do Brasil — por meio do número +55 61 3212-8400. A identidade do denunciante é mantida em absoluto sigilo.

• A denúncia pode ser feita ainda no site da Polícia Federal (dcs@dpf.gov.br); no site do Safernet (www.safernet.org.br), para os crimes cometidos na internet; à Polícia Militar (190); e, para casos ocorridos nas estradas, à Polícia Rodoviária Federal (191).

Fonte: Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT)

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