BRASÍLIA DE OUTROS CARNAVAIS

Tradição carnavalesca em Brasília nasceu antes mesmo da capital; relembre

Primeira reportagem da série especial conta como nasceram as festas no DF, as histórias marcantes e como a nova capital inspirou marchinhas na folia do Rio de Janeiro

Thays Martins
postado em 13/02/2021 06:00 / atualizado em 16/02/2021 13:37
Desfile da Aruc -  (crédito: Arquivo Aruc)
Desfile da Aruc - (crédito: Arquivo Aruc)

Brasiliense adora um carnaval. Prova disso são as multidões que os bloquinhos têm arrastado nos últimos anos. Mas se engana quem pensa que a folia é coisa recente por aqui. Antes mesmo de a capital ser inaugurada tinha gente fazendo a festa acontecer: operários e autoridades que viviam nos acampamentos celebravam a data ao som dos tamborins no improviso.

As comemorações pré-inauguração ocorriam, principalmente, porque naquela épocas os candangos não tinham como viajar para passar o feriado fora. “Há relatos de comemorações de carnaval ainda durante a construção da nova capital, entre os anos de 1958 e 1960. Relatos de pioneiros fazem referência a festas que ocorriam nos salões de acampamentos e no Brasília Palace Hotel naquele momento. Além disso, trabalhadores também contam com entusiasmo como se organizavam para participar das festas em Luziânia e Planaltina”, explica Cristiane de Assis Portela, professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do projeto Outras Brasílias: ensino de história do DF a partir de fontes documentais.

No ano da inauguração da capital, os foliões também faziam festa no que hoje é o Núcleo Bandeirante. “Em 1960, um pouco antes da inauguração, alguns poucos foliões se reuniam na Travessa Dom Bosco, inaugurando a Festa do Momo na capital, e levando a leveza do carnaval para a Cidade Livre, diante de uma população que já se angustiava com a proximidade da data que prenunciava a extinção daquela cidade provisória”, acrescenta Cristiane.

A tradição dos bailes

Após a inauguração da nova capital, em 1960, o espírito carnavalesco realmente tomou conta de Brasília. A então prefeitura começou a promover a festa de Momo no Baile da Cidade, que ocorria no Hotel Nacional, a partir de 1962.

A folia era tão grande que até atrações de Hollywood estiveram presentes nos primórdios do carnaval brasiliense. No primeiro ano, a atriz Rita Hayworth foi a atração de um baile de máscaras. No ano seguinte, esteve por aqui, no Baile da Cidade, o ator Kirk Douglas, conhecido por Spartacus, Glória Feita de Sangue e A Montanha dos Sete Abutres.

As festas em clubes, muito comuns até os anos 2000, ocorriam em vários locais, como no Brasília Palace Hotel, na Travessa Dom Bosco e nas boates da Cidade Livre, atual Núcleo Bandeirante. Até o Teatro Nacional, ainda em construção, foi palco de celebrações momescas.

  • Carnaval em clubes nos anos 60
    Carnaval em clubes nos anos 60 Arquivo Público
  • Carnaval em clubes nos anos 60
    Carnaval em clubes nos anos 60 Arquivo Público
  • Kirk Douglas curte o carnaval em Brasília
    Kirk Douglas curte o carnaval em Brasília Arquivo Público
  • Rita Hayworth curte o carnaval em Brasília
    Rita Hayworth curte o carnaval em Brasília Arquivo Público

O samba presente

Em 1961, apenas um ano após a inauguração de Brasília, um grupo de cariocas fundou a primeira escola de samba da nova capital, a Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro (Aruc). Com quase a mesma idade de Brasília, a escola é hoje Patrimônio Cultural Imaterial do DF e detém o título de octacampeã do carnaval.

O primeiro desfile veio no ano seguinte, com a W3 servindo de avenida. Além da Aruc, desfilaram outras quatro escolas: Alvorada em Ritmo, Brasil Moreno, Nós somos candangos. e Unidos de Sobradinho. Nos anos seguintes, os desfiles mudaram para a plataforma superior da Rodoviária. Em 1967 voltaram a ocorrer na W3. Em 2005, os desfiles das escolas de samba ganharam um local oficial, o Ceilambódromo, em Ceilândia.

  • Desfile da Aruc
    Desfile da Aruc Arquivo Aruc
  • Desfile da Aruc
    Desfile da Aruc Arquivo Aruc
  • Desfile da Aruc
    Desfile da Aruc Arquivo Aruc
  • Desfile da Aruc
    Desfile da Aruc Arquivo Aruc
  • Desfile da Aruc
    Desfile da Aruc Arquivo Aruc
  • Sala de troféus da Aruc
    Sala de troféus da Aruc Agência Brasília
  • Sala de troféus da Aruc
    Sala de troféus da Aruc Agência Brasília

Tragédia de carnaval

Porém, o carnaval de Brasília não ficou marcado na história só por momentos felizes. Em 1959, quando a capital ainda era construída, um episódio controverso deixou marcas até hoje. Em 8 de fevereiro de 1959, uma tragédia aconteceu em umacampamento de obras na Vila Planalto. O caso ficou conhecido como “Massacre da GEB” ou “Massacre da Pacheco Fernandes”.

Naquele dia, policiais foram chamados para atender a um desentendimento entre trabalhadores que reclamavam da comida ruim no refeitório. A versão oficial diz que a chegada da polícia resultou em um morto e alguns feridos. Os números, porém, são controversos. Ainda hoje, existe a versão de que, na verdade, teriam sido dezenas de mortos. “Podemos afirmar que o massacre ocorrido naquele momento é um fato histórico, já que apresenta indícios de sua ocorrência: pelo menos um telegrama, um inquérito oficial, duas reportagens de jornal da época, malas abandonadas no acampamento, algumas declarações de gestores que admitem a decisão por impor um silêncio oficial, e, como contranarrativas, relatos orais de muitos trabalhadores”, destaca a professora.

Cristiane pontua que aquele episódio foi um estopim das condições desumanas a que os candangos eram submetidos, como má alimentação, falta de água e exaustivas jornadas de trabalho. “Já que nem tudo é festa, o ‘Monumento aos candangos mortos’, em uma praça na Vila Planalto, nos lembra o que não devemos esquecer: que a memória importa e que as narrativas históricas estão ali para serem disputadas. As memórias de outros carnavais não nos dizem somente dos bons carnavais”, arremata.

Brasília como inspiração

Embora por aqui o carnaval ainda fosse pequeno no início dos anos 1960, Brasília marcava presença em uma folia bem maior, sendo cantada em marchinhas no Rio de Janeiro. A expectativa em torno da mudança da capital foi traduzida em versos nas folias da virada da década.

Em 1957, Wilson Batista, Antônio Nássara e Jorge de Castro cantaram sobre a aflição de deixar o Rio de Janeiro e partir rumo ao interior do país, no meio do Goiás. “Seu doutor, tá legal/ Chegou a hora de mudar a capital/ Ai meu Rio ... meu Rio de Estácio de Sá/ Adeus Pão-de-Açúcar e Corcovado/ Eu também, eu também vou pra lá/ Vou deixar velhos amigos/ Pois sempre fui um bom rapaz/ Adeus, minha Copacabana/ Meu amor também vai para Goiás.”

No ano seguinte, foi a vez de José Rosas e Jorge Veiga cantarem sobre as promessas de como seria a nova capital. “Ai Brasília/ Brasília é um mundo novo/ Você precisa ver JK falando ao povo/ Vou me embora e não levo saudade da Guanabara/ Vou me embora pra Brasília/ Pois Brasília é jóia rara/ Aquilo é um paraíso, Leoni me falou/ Me leva, me leva, seu presidente que eu vou.”



E se o assunto é música, talvez 2021 seja um bom ano para relembrar o samba-enredo da Aruc em 1985: “Não adianta lamentar, temos mais é que sorrir. Levante a cabeça, olhe para cima, sacode a poeira e dê a volta por cima”.



Brasília pode não ser conhecida por ter o maior carnaval do Brasil, mas quem é daqui já sabe que nem precisa sair do quadradinho para curtir uma boa festa. Que toda essa alegria volte logo.

Confira os demais capítulos da série Brasília de outros carnavais:

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