MOBILIDADE URBANA

Os desafios para quem usa bicicleta como meio de transporte em Brasília

Em 2010, a promessa era entregar 600 km até o fim de 2010. Passada mais de uma década, somente agora a capital se aproxima da meta e os usuários sentem diariamente os problemas da falta de integração das ciclovias

Adriana Bernardes
Ana Maria da Silva
postado em 19/08/2021 06:00
Para o servidor público Uirá Felipe Lorenço, a bicicleta é o meio de transporte, assim como para os filhos Cauã, Iuri, e para a esposa Ronieli Barbosa -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press)
Para o servidor público Uirá Felipe Lorenço, a bicicleta é o meio de transporte, assim como para os filhos Cauã, Iuri, e para a esposa Ronieli Barbosa - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press)

Usar a bicicleta como meio de transporte ou para o lazer no Distrito Federal é uma decisão que pode custar a vida. Um levantamento feito pelo Correio, com base nas estatísticas dos últimos 20 anos do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF), revelou que para cada 10 mortos no trânsito da capital, um é ciclista. Fica evidente que Brasília, cidade moderna, porém projetada sob a lógica rodoviarista da década de 1950, ainda negligencia essa parcela de brasilienses que, por opção ou falta dela, circula pelo Distrito Federal de bicicleta.

Neste 19 de agosto, data escolhida para celebrar o ciclista, a luta por respeito e garantia dos direitos de quem pedala está na ordem do dia. Na série Mobilidade Urbana, o Correio aborda os desafios da inclusão da bike como meio de transporte e os caminhos para a transformação de Brasília numa cidade amiga do ciclista.

No cenário atual, o poder público ainda elabora e executa obras de infraestrutura rodoviária sem a previsão de ciclovias ou ciclofaixas. E condutores se apropriam das vias como se fossem propriedade privada, onde tudo pode, inclusive fechar ou “tirar fino” dos ciclistas numa demonstração de intolerância e desprezo à vida.

Indignação. Assim a pedagoga Nádia Bittencourt, 56 anos, define o sentimento de ter sido atropelada em 10 de outubro, na quadra 704, da Asa Norte. Ela e um amigo, o funcionário público Ricardo Campelo Aragão, 58, pedalavam quando acabaram atingidos por um carro. Ricardo não sobreviveu. No dia do acidente, o amigo decidiu acompanhar Nádia até em casa. Quando pedalavam em frente à Igreja de Cristo, um carro em alta velocidade os atingiu. “Eu fiquei desacordada e o Ricardo nunca mais acordou. Fico torcendo para que as coisas mudem. Apesar do DF ter a maior malha cicloviária, ela não tem continuidade. Agora, encarei meu medo porque quase morri pedalando, mas ela (bike) também é minha salvação. Me ajuda a passar pelo processo de superação, mas ainda tenho medo”, desabafa.

807 mortes

Ao longo dos últimos 20 anos, ao menos 807 brasilienses morreram enquanto pedalavam no Distrito Federal, 40 por ano, em média. Promover a circulação de bikes e áreas de segurança para ciclistas é uma obrigação do poder público, prevista no artigo 21 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB). Também está no CTB uma definição objetiva das normas de circulação: …”Em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres.”

Na avaliação do Pastor Willy Gonzales Taco, do Centro Interdisciplinar em Estudos de Transporte da Universidade de Brasília (Ceftru/UnB), as dificuldades enfrentadas pelos ciclistas estão diretamente relacionadas a um sistema viário inseguro; falta de campanhas voltadas à necessidade de respeito ao espaço do ciclista; infraestrutura cicloviária precária e falta de integração entre os modais que incentivem o uso da bicicleta.

Segundo o pesquisador, embora Brasília tenha ciclovias, falta conexão entre elas. E se no Plano Piloto a malha cicloviária é um pouco melhor, a situação piora muito à medida em que nos afastamos do centro do poder.

Um longo caminho

Daqui a 13 dias, a lei que criou o Sistema Cicloviário do DF (Lei nº 4.397/09) completará 12 anos. Quando foi instituída, em 31 de agosto de 2009, o DF contava com 42 km de ciclovias e ciclofaixas. A promessa do governo era entregar 600 km até o fim de 2010. Passada mais de uma década, somente agora a capital se aproxima da meta.

Dados da Secretaria de Transporte e Mobilidade (Semob) revelam que a malha cicloviária hoje é de 586,50Km, e as políticas públicas são traçadas pela Diretoria de Ciclomobilidade. “O DF está em segundo lugar de quilometragem cicloviária no Brasil e temos ciclovias em todas as regiões administrativas. Ainda são poucas, porque a demanda é grande”, reconhece o subsecretário de planejamento, José Soares de Paiva.

De acordo com ele, o Plano de Mobilidade Ativa reúne as ações para a promoção da mobilidade ativa a curto, médio e longo prazos. “Em torno de 40% a 42% dos deslocamentos na capital são feitos a pé ou de bicicleta, um índice alto. Mas nem todo mundo tem condição, desejo ou tempo necessário para utilizar a bicicleta”, constata.

Escolha consciente

E quem está disposto a encarar o asfalto pedalando, desfruta de um cotidiano sublinhado de prazer, medo e indignação. O servidor público Uirá Felipe Lourenço, 42, abriu mão do uso de veículos motorizados há cerca de 20 anos e, desde então, o camelo, apelido carinhoso dos brasilienses para bicicleta, é o meio de transporte da família. “Morei em São Paulo e, depois de um tempo, saturei. Um dia peguei uma bike e foi paixão no primeiro pedal. Em Brasília, as pessoas falavam que a cidade era feita para andar de carro”, diz.

Hoje ele pedala com a esposa, a servidora pública Ronieli Barbosa da Silva, 40, e com os filhos, Cauã, 13, e Iuri, 12. Dentre os principais problemas enfrentados pela família estão a falta de iluminação, alta velocidade dos carros, falta de integração com outros meios de transporte e falta de conexão das ciclofaixas.

Limitações que também são sentidas pelo ciclista e estudante universitário Pedro Luiz Souza, 22, que mora no Lago Norte. Todos os dias, ele vai até o centro da cidade e acredita que a bike é uma tendência, tanto do ponto de vista econômico, como ambiental. “O complicado é que muitas ciclovias são feitas a partir de uma calçada. A velocidade dos carros também nos deixa bem vulneráveis”, pontua.

Do ponto de vista da conscientização de condutores e ciclistas, o diretor de Educação de Trânsito do Detran, Marcelo Granja, cita o projeto Bike em Dia, por meio do qual os agentes abordam ciclistas no meio da rua para alertar quanto às normas de circulação e a necessidade de manutenção da bicicleta, além de ministrarem palestras nas escolas. “Temos que encerrar essa ideia de que o carro tem prioridade. É justamente o contrário. O ciclista deve ser resguardado. Até porque uma bicicleta a mais na ciclovia é um carro a menos no trânsito, e melhora o fluxo”, finaliza.

Programe-se

Desde 2003, a ong Roda das Paz articula setores da sociedade civil por uma cultura de paz no trânsito, defendendo a necessidade de um planejamento de mobilidade urbana sustentável para motoristas, ciclistas e pedestres. Este ano, mesmo com a pandemia, o grupo realiza algumas ações para marcar o Dia Nacional do Ciclista.

19 de agosto
» 7h às 9h - Concentração será na Ghost Bike de Pedro Davison, no canteiro entre o Eixão e o Eixo L na altura da 214 Sul. Lá, ocorre a apresentação da nova campanha que a ong Rodas da Paz desenvolverá ao longo do ano;

» Anúncio do resultado da consulta pública da campanha #CicloviaTemNome e a inauguração da Exposição dos Spoke Cards, com cartões fixados nos raios das bicicletas, criados pelo designer Caê Penna especialmente para o evento;

14h - Embaixada da Suécia
» Recebimento de coletes reflexivos doados ao Rodas da Paz para o evento;

19h às 22h - Espaço Infinu, na 506 Sul
» Exibição do curta-metragem Lulu Vai de Bike em dois horários, 19h30 e 21h, seguido de debate com o público;

» Exposição das freak bikes do designer Kande Bonfim, da Oficina Geringonça, com a possibilidade do público pedalar com as bicicletas;

» Distribuição dos DVD´s do filme No Rastro das Cargueiras, dirigido por Carol Matias, sobre o uso de bicicletas próprias para transporte de cargas (cargueiras) por catadores de materiais recicláveis;

» Entrega de coletes reflexivos doados pela Embaixada da Suécia para o público que for pedalando à Infinu;

22 de agosto
» 9h às 12h - Concentração no canteiro entre o Eixão e o Eixo L na altura da 214 Sul, Praça do Ciclista, onde fica a Ghost Bike;

» Leitura para crianças do livro infantil Pedalar É Suave;

» Distribuição de frutas e água para quem visitar a Praça do Ciclista;

» Um QR Code em exposição no local lançará uma pergunta sobre bicicletas. Quem participar ganhará um Spoke Card como brinde.

Você sabia?

O Dia Nacional do Ciclista, Lei 13.580/2017, é uma homenagem ao biólogo e ciclista brasiliense Pedro Davison, morto em 2006 por um motorista embriagado, com carteira de habilitação vencida. O grupo Rodas da Paz mobilizou a opinião pública e foi a primeira vez que o Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT) denunciou e o Judiciário aceitou a tese de crime doloso no trânsito. O julgamento por homicídio doloso foi em 2010.

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