TRADIÇÃO

No Dia de Cosme e Damião, brasilienses adoçam cotidiano da comunidade

Moradores do Distrito Federal mantêm vivo o costume de entregar guloseimas no Dia de Cosme e Damião, comemorado nesta segunda-feira (27/9)

Ana Isabel Mansur
postado em 27/09/2021 06:00
Saquinhos geralmente têm maria-mole, suspiros, quebra-queixos e pipocas. O dia 27 de setembro ficou no imaginário coletivo como data de distribuição desses itens -  (crédito: Minervino Junior/CB/D.A Press)
Saquinhos geralmente têm maria-mole, suspiros, quebra-queixos e pipocas. O dia 27 de setembro ficou no imaginário coletivo como data de distribuição desses itens - (crédito: Minervino Junior/CB/D.A Press)

Se a data ligada à distribuição de doces em outros países remete ao susto e ao medo, no Brasil o clima é de celebração. O Dia de Cosme e Damião, comemorado hoje, não condiciona a entrega dos presentes às travessuras nem exige fantasias. Com a pandemia da covid-19, a tradição de adoçar o cotidiano da comunidade ganhou um novo significado e mostrou que é possível quebrar até o mais amargo e azedo dos momentos. Originado no catolicismo, o Dia de Cosme e Damião também faz parte das crenças de matriz africana, como a umbanda e o candomblé.

A lembrança afetiva da data é o que faz muitas pessoas manterem a tradição da distribuição de doces. É o caso da professora de biologia Ravenna Silva, moradora da Vila Planalto, que organizou uma arrecadação entre os amigos para montar os famosos saquinhos.

“Eu sempre peguei doces no Dia de Cosme e Damião, é uma forma de manter o costume. Agora, com a minha idade, não dá mais para pegar, então eu distribuo”, diverte-se a jovem de 29 anos, que conseguiu montar 150 kits. Um grupo de oito voluntários distribuiu os presentes ontem, em Sobradinho dos Melos, no Paranoá. A entrega continua hoje, na Vila Planalto. “Eu tento continuar entregando os doces, é um costume que fez parte da minha infância. Quero que outras crianças tenham essa experiência”, explica a jovem.

O período é um dos que mais movimenta a economia local. Astrogildo Rodrigues, dono da distribuidora de doces Sobramel, em Sobradinho, conta que as vendas em 2021 apresentaram melhora na comparação com 2020, mas o movimento continua fraco. Segundo o comerciante, a pandemia da covid-19 teve papel na redução da procura pelos doces, mas o desapego com a tradição também contribuiu para o cenário.

“Muitos idosos, que são boa parte dos compradores, infelizmente morreram, estão doentes ou com medo de sair de casa por causa da pandemia. Mas a perda do costume também ajuda”, reflete Astrogildo, acrescentando que os clientes têm gastado menos com a data. “Quem tem costume de fazer os saquinhos continua fazendo, mesmo em quantidade reduzida”, completa o dono da loja.

História

De acordo com a historiadora e educadora popular Juliana Meato, a origem da tradição de entrega de doces na data remonta à história de Cosme e Damião, irmãos gêmeos e médicos que viveram no século 3 e atuavam por meio da generosidade. “Eles não cobravam nada para curar as pessoas. Os atos caridosos convertiam muitos ao cristianismo, em um período romano em que a fé pagã ainda tinha muita força. Por não se curvarem perante os deuses pagãos, Cosme e Damião foram considerados inimigos das divindades. Segundo a história, foram perseguidos e mortos pelo imperador romano Diocleciano (244-311)”, conta Juliana, destacando que há várias versões sobre como os irmãos teriam sido assassinados.

Com o fim da perseguição aos cristãos em Roma, o culto aos mártires se intensificou e, no século 6, o papa Félix IV inaugurou a Basílica dos Santos Cosme e Damião, em 27 de setembro, em Roma. A partir de então, a homenagem aos irmãos se espalhou pela Europa e chegou a Portugal, sendo trazida pelos colonizadores ao Brasil. Em 1535, foi construída uma igreja em homenagem aos santos em Igarassu (PE).

  • Natural do Rio de Janeiro, Juliana entrega doces nas regiões administrativas do DF
    Natural do Rio de Janeiro, Juliana entrega doces nas regiões administrativas do DF Arquivo pessoal

Intolerância

Ao desembarcar em terras brasileiras, porém, a tradição do Dia de Cosme e Damião foi subvertida. Se antes os santos eram ligados à conversão à fé católica, a data passou a ser relacionada aos cultos de matriz africana e a ser vista com preconceito por parte da população. “A reforma litúrgica de 1969 mudou a data para 26 de setembro no calendário católico. Mas, no imaginário coletivo, o dia 27 permaneceu”, explica Juliana, que mantém o hábito de distribuir doces no dia. “É muito bom ver o sorriso no rosto da criança. Evito colocar chicletes, tento dar ênfase à tradição. O Plano Piloto não proporciona muito o senso de comunidade, então as pessoas não têm o costume da distribuição aqui (no bairro)”, lamenta a historiadora, que mora na Asa Sul.

Vinda de Niterói (RJ), em 2019, Juliana sentiu a diferença de tradição no Dia de Cosme e Damião entre a cidade fluminense e a capital federal. “Amanhã, vou distribuir em Samambaia e Taguatinga, acredito que a adesão será maior”, espera a educadora.

Como a história se repete, a origem de intolerância ligada ao nascimento do mito de Cosme e Damião continua; porém, com mudanças nos papéis: a fé cristã passou a ser, muitas vezes, autora de movimentos discriminatórios em relação à comemoração ligada às religiões africanas.

“Temos, no Brasil, tentativas de sincretismo, de sobrevivência e de superação da intolerância, mas ainda é muito presente. Até hoje, há uma postura racista de pessoas que não fazem parte da fé, mas não conseguem lidar com a devoção e festividade da comemoração. Tentamos, por meio da entrega dos doces, dar continuidade a uma expressão legítima da presença das religiões africanas no país”, finaliza Juliana.

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Para saber mais

Toques regionais

A forma de celebração da data pode assumir diversas configurações, a depender do local. “As tradições baianas mantêm a oferta do caruru, relacionado aos ibejis, a forma do sincretismo de Cosme e Damião. No subúrbio do Rio de Janeiro, a festa é mais presente na distribuição dos saquinhos de doce, como uma brincadeira de rua e maneira de levar as crianças a brincar e a ocupar a cidade, com os doces representando a inocência e a doçura da infância”, aponta a historiadora Juliana Meato.

 

 

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