Cotidiano

Brasilienses enfrentam traumas e dores causadas pelo abandono

Jovens que cresceram sem o suporte do pai contam como essa ausência impacta na saúde mental e nas relações afetivas. Especialistas alertam que traumas podem perdurar na vida adulta e gerar quadros de depressão e ansiedade

*Eduardo Fernandes
postado em 02/10/2021 06:00
 (crédito: Waldo Virgo)
(crédito: Waldo Virgo)

O abandono paterno é uma realidade em mais de 20% dos lares no Distrito Federal, de acordo com dados da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) — compilados em 2020 — e representam, em números, o drama enfrentado por milhares de brasilienses que vivem as consequências emocionais e financeiras do desamparo do genitor.

Uma realidade conhecida por Jardel Cavalcante, 22. Até os 10 anos, suas memórias em relação ao pai estão associadas ao alcoolismo e a uma dinâmica de abusos e violência física contra a mãe. “Eu não entendia muito, só lembro de sofrer bastante com os problemas domésticos que presenciava. Meu pai voltava bêbado para casa, batia na minha mãe, às vezes, quebrava tudo, ela se separou. Depois disso, seguimos nossa vida”, lembra.

Apesar do alívio, a falta de uma figura masculina sempre foi uma constante na vida do jovem, que não esconde o ressentimento. Embora seja grato à formação dada pela mãe, os problemas na infância trouxeram desdobramentos para sua saúde mental, trazendo traumas que ele carrega até hoje. “Sou um cara muito ansioso, tenho complexo de inferioridade. Me conheço, sei que sou uma pessoa que não deveria ter esse complexo, mas sofro. Também já estive muito ruim por conta da depressão. Não vou mentir, a falta do meu pai sinto até hoje”, admite. As experiências o motivam a buscar um futuro diferente, ele conta que deseja construir uma família e ensinar aos filhos o que aprendeu sozinho.

Os sintomas relatados por Jardel são conhecidos por especialistas em saúde mental. Uma pesquisa feita pela União das Instituições Educacionais de São Paulo (Uniesp) e publicada pela Revista Ciência Contemporânea mostrou que as principais consequências do abandono paterno na vida emocional dos filhos se refletem em sentimentos de inferioridade, como culpa, baixa autoestima, insegurança, incapacidade de se sentirem amadas e instabilidade escolar.

A psicóloga analítica Renata Barros, 45, explica que quando o pai “desaparece” a criança, muitas vezes, não sabe o que aconteceu com ele, podendo desenvolver sentimentos de rejeição, perda, morte, culpa e angústia. “A criança se vê dentro de um conflito existencial, pensando no que fez para o pai não voltar mais. É importante diferenciar o abandono da ausência. No abandono, o pai desaparece. Na ausência, o pai está presente mas sem participação na vida do filho. Isso gera conflitos emocionais, principalmente de autoestima rebaixada. A criança pode sentir-se ignorada e invisível, se culpando por não ser importante ou insuficiente”, afirma.

Segundo a especialista, é comum a busca pela substituição. A criança procura outro referencial paterno, como o avô, o tio e, até mesmo, o professor. “É importante ter uma figura substituta — inicialmente a mãe desenvolve este papel — contudo, a criança precisa ter uma representação concreta da figura paterna, pois não entende de forma simbólica que a figura feminina pode exercer a mesma função do pai”, diz. Mesmo a família amparando a criança e organizando uma nova dinâmica, ainda assim o filho pode desenvolver o sentimento de rejeição.

Lacuna

Embora não tenha sido abandonada, a estudante de biotecnologia Isis Uchôa, 21, se acostumou a não ter a participação ativa do pai em sua vida. Após a separação dos genitores, provocada por brigas em excesso, o pai se tornou uma figura distante. Com o divórcio oficializado, a presença dele virou um evento raro. “No começo, sentia bastante falta e até tinha inveja das minhas primas e das minhas amigas que tinham um pai presente e parceiro. Muitas vezes coloquei a culpa em mim pela ausência dele, achei que não estivesse fazendo o suficiente. Felizmente minha mãe sempre compensou muito essa falta, principalmente afetiva”, pondera.

Uma compensação que chegou depois muito sofrimento para a estudante de medicina veterinária Fabiana Milhomem, 19. Após uma separação difícil, a mãe de Fabiana descobriu um câncer, o que distanciou pai e filha. “Eu senti que ele se afastou, acho que ele não conseguia lidar com a situação e escolheu se afastar. Aos poucos, ele foi querendo ajudar, mas não era a mesma coisa, não tinha mais o meu respeito”, lembra.

O desamparo num momento de dificuldade fez com que Fabiana desenvolvesse ansiedade e dificuldade de estabelecer laços de confiança. Após a piora da mãe e o seu falecimento, a jovem e o pai se reaproximaram, e hoje mantêm uma relação melhor. Ela diz que trabalha constantemente para que as feridas do passado não atrapalhem a nova relação.

A neuropsicóloga Jeanne Rodrigues, 28, observa, em sua caminhada clínica, que as queixas relacionadas ao tema são comuns. Segundo ela, muitos adultos chegam ao consultório com crenças de desvalor que não condizem com as vivências atuais. Na fase adulta, os desdobramentos dessas dificuldades vividas na infância e na adolescência refletem, principalmente, em questões de depressão e, em alguns casos, podem fazer com que as pessoas se submetam a vínculos afetivos de cunho abusivo. “Crenças de inferioridade, desvalor, desamor e dificuldades de estabelecimento de vínculos nos relacionamentos. Muitos adultos, por não se sentirem dignos de receber amor, buscam o amor não recebido na infância, sujeitando-se a relacionamentos tóxicos e abusivos que prejudicam sua saúde mental e física”, sintetiza.

Direitos

A advogada Thais Rodrigues, 26, esclarece o abandono afetivo que gera responsabilidade civil. “Muitos genitores prestam o auxílio financeiro e entendem que é suficiente, todavia, quando estamos diante de uma situação em que a criança ou adolescente é desprezado, não conta com auxílio emocional, podemos dizer que estamos diante de um caso de abandono afetivo”, explica.

Ela salienta que a Constituição Federal, nos moldes do art. 227, 229, e o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos termos do art. 3 e 4, asseguram a convivência familiar e comunitária. “A responsabilidade pela negligência é passível de reparação por danos morais, em vista do descumprimento do direito da criança e do adolescente”, explica Thais. A especialista ressalta que o pai ou a mãe que incorrem nessa prática poderá reparar o filho pelos danos psicológicos causados, com objetivo de diminuir os anos de dor, solidão, rejeição e desamparo.

*Estagiário sob a supervisão de Juliana Oliveira

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