SOCIEDADE

Combate ao feminicídio requer mudanças culturais profundas, avaliam especialistas

Em média, oito mulheres sofrem violência doméstica por dia no DF. Desde 2015, a polícia civil abriu 126 inquéritos para investigar a morte delas nesse contexto. Investimento em ações para mudar a cultura patriarcal que contribui com o cenário estão entre medidas necessárias

Samara Schwingel
postado em 24/10/2021 06:00 / atualizado em 24/10/2021 06:35
Ação promovida na Esplanada dos Ministérios, em 25 de novembro de 2019, teve 1.206 cruzes fincadas no gramado para representar vítimas de feminicídio no país até aquela data -  (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
Ação promovida na Esplanada dos Ministérios, em 25 de novembro de 2019, teve 1.206 cruzes fincadas no gramado para representar vítimas de feminicídio no país até aquela data - (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

A cada dia, oito mulheres sofrem com a violência doméstica no Distrito Federal. A média tem base nos dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, que contabilizou 3.243 vítimas desse crime em todo o ano passado. Frequentemente, o ciclo de agressões termina em feminicídio. Só neste ano, ao menos 18 mulheres foram assassinadas nesse contexto na capital do país.

A maioria dos agressores são homens com quem elas mantêm ou tiveram um relacionamento amoroso. Desde que o delito se tornou uma qualificadora do crime de homicídio, em 2015, até o mês passado, a Polícia Civil do DF indiciou 104 suspeitos — dos quais 58 foram condenados pela Justiça (leia No detalhe).

No mesmo período, foram abertos 126 inquéritos policiais para investigar feminicídios. A informação consta no Relatório de Monitoramento dos Feminicídios no Distrito Federal, elaborado pela Câmara Técnica de Monitoramento de Homicídios e Feminicídios (CTMHF) da Secretaria de Segurança Pública (SSP-DF). Ainda segundo o documento, 87,4% dos autores tinham uma relação íntima com a vítima.

Este mês ainda não acabou, e ao menos três mulheres morreram em decorrência da violência motivada pelo gênero. A primeira foi a auxiliar de limpeza Cilma da Cruz Galvão, 51 anos, assassinada dentro de casa, em 3 de outubro. O principal suspeito é o namorado dela, Evanildo das Neves da Hora, 37. Duas semanas depois, Francisco de Assis Guembitzchi, 55, matou a empresária Olívia Makoski, 47, que tentava se separar dele. Após o crime, o acusado tirou a própria vida.

No dia seguinte, Márcia Aparecida Bispo Duarte, 43, morreu após passar 10 dias internada na unidade de terapia intensiva (UTI) devido a lesões provocadas com uma barra de ferro. O agressor, marido de uma cunhada da vítima, não teve o nome divulgado pela polícia. Ele também feriu a companheira, Ivani Ferreira da Silva, 42, que ficou com sequelas.

Promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), Mariana Távora considera que, para reduzir a incidência de casos de agressões contra mulheres, é preciso criar e fomentar programas que ofereçam atendimentos psicossociais duradouros às vítimas e aos agressores. O objetivo é orientar a população sobre uma característica da sociedade que dificulta o combate a esse tipo de violência: o machismo estrutural. “É preciso investir em educação e acompanhamento longo de, no mínimo, seis meses, pois isso vai trabalhar na desconstrução da cultura misógina que ainda temos na sociedade brasileira”, sugere.

Mariana Távora ressalta que há medidas desenvolvidas pelo Executivo local, mas ainda não as considera suficientes. Ela destaca ser importante a criação de programas que tenham portas abertas a todos. “O GDF tem os Nafavds (Núcleos de Atendimento à Família e aos Autores de Violência Doméstica), mas eles não conseguem lidar com toda a demanda. Seria importante ter um fortalecimento dessa política e pensar metodologias de atendimento diferenciadas para cada público. Podem existir, sim, homens que queiram se dirigir a esses locais de forma espontânea. Mas programas que precisam de encaminhamento judicial não facilitam o acesso deles ao conhecimento”, comenta a promotora de Justiça.

Dados sobre feminicídios e violência contra a mulher no Distrito Federal
Dados sobre feminicídios e violência contra a mulher no Distrito Federal (foto: Editoria de Arte/CB)
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Questão cultural

Um homem de 43 anos, que pediu para ter a identidade preservada, participou dos encontros do Nafavds por seis meses. Ele relata que teve uma nítida mudança de comportamento e de pensamento. “Eu era muito agressivo, sempre brigava e xingava a minha mulher. Na minha cabeça, à época, essas coisas não eram violências reais. Eu não batia nela; então, estava tudo certo”, diz.

Em 2020, após uma discussão, a vítima o denunciou. Sem dar detalhes do que teria motivado a companheira a procurar a polícia, o entrevistado afirmou que, durante o trânsito do processo na Justiça, as reuniões do núcleo foram oferecidas como forma de acompanhamento. “De início, não quis fazer parte, mas, ao longo do trabalho, fui me sentindo melhor e bem com tudo o que aprendi. Mudou a minha vida e a da minha família. A convivência é outra”, ressalta o participante, que segue casado com a mesma mulher.

No Brasil, a Lei Maria da Penha, criada em 2006, foi a primeira a classificar a violência doméstica como crime e a proteger as vítimas. Apesar da importância da legislação, a professora de antropologia da Universidade de Brasília (UnB) Lia Zanotta explica que há um longo caminho a se percorrer no combate à desigualdade de gênero. “Temos de lutar contra algo que é cultural e que se perpetua na sociedade há tanto tempo. É algo que precisa de políticas públicas para homens e mulheres”, ressalta (leia Para saber mais).

A docente pontua que, além de proteger as vítimas que denunciam agressões, deve-se garantir que os agressores participem de reuniões de suporte psicológico e social. “Eles têm de entender que as mulheres não são objetos e precisam ser respeitadas. Para isso, é extremamente importante que eles sejam obrigados a frequentar grupos de apoio. Só assim temos a chance de mudar o pensamento de quem ainda as vê como inferiores”, completa Lia.

Ações

Em nota, a Secretaria da Mulher do DF afirmou que “a violência doméstica está arraigada em todas as esferas da sociedade” e que “é preciso engajar e mobilizar todos os setores na luta pelo enfrentamento” a esse tipo de crime. A pasta informou que adotou ações e projetos desde o primeiro ano da gestão Ibaneis Rocha (MDB) e que, em maio último, lançou o aplicativo Proteja-se, em parceria com o Disque 100 e o Ligue 180 — canais de denúncias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos —, para acelerar o atendimento a quem vive em situação de risco.

Em março, foi reaberta a Casa da Mulher Brasileira, em Ceilândia, que estava fechada devido ao comprometimento da estrutura física do espaço. O espaço conta com gestão compartilhada entre Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública do Distrito Federal, além da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher. A pasta acrescentou que serão construídas mais quatro unidades e que criou um canal de atendimento via WhatsApp para facilitar as denúncias, pelo telefone 61 994-150-635.

Por fim, a secretaria comunicou que promove “buscas ativas a possíveis vítimas de violência” por meio de palestras em instituições públicas e privadas, principalmente naquelas que integram a Rede Sou Mais Mulher, e das unidades móveis, o Ônibus da Mulher.

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Suporte

Os Nafavds oferecem acompanhamento psicossocial a pessoas envolvidas em situação de violência doméstica e familiar contra mulheres, tanto vítimas quanto autores. Para ter acesso ao serviço, é necessário comparecer ao núcleo mais próximo, com os seguintes documentos: RG, CPF e o número do processo judicial relacionado à Lei Maria da Penha. O Distrito Federal conta com nove núcleos. Para conferir os locais e telefones para contato, acesse: mulher.df.gov.br/nafavds.

Para saber mais

Cultura do patriarcado versus machismo

A cultura do patriarcado é um tipo de entendimento de que cabe aos homens controlar as mulheres da família, de que eles sempre mandam — como pais, maridos, noivos, namorados —, independentemente da relação com elas. Trata-se de uma organização social que se faz em torno do poder masculino sobre o feminino. Já o machismo é a forma como isso ficou na mentalidade das pessoas e se incorporou à sociedade. Essa diferença influencia no tratamento entre homens e mulheres, bem como nas oportunidades disponibilizadas a cada um desses grupos.

Fonte: Professora Lia Zanotta, da Universidade de Brasília (UnB)

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