Legislação

Em três anos, Justiça derrubou 28 normas sancionadas no DF

Judiciário também considerou inconstitucionais outros 29 decretos, instruções ou leis de gestões anteriores do Executivo local. A maioria das ações que questionaram os textos partiu do próprio governo distrital

Cibele Moreira
Edis Henrique Peres
Pablo Giovanni*
postado em 20/02/2022 06:00 / atualizado em 20/02/2022 10:04
 (crédito: Vinicius Cardoso Vieira/Esp. CB/D.A Press )
(crédito: Vinicius Cardoso Vieira/Esp. CB/D.A Press )

Ao longo dos últimos três anos, 28 das normas sancionadas na atual gestão do Executivo local foram consideradas inconstitucionais pelo Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT). Além delas, entre 2019 e 2021, o órgão colegiado derrubou outros 29 decretos, instruções ou leis publicados em governos anteriores, segundo levantamento feito pelo Correio. Especialistas em direito afirmam que os principais motivos para essas anulações envolvem o não cumprimento do trâmite necessário para a aprovação legal, ambiguidades na interpretação do texto ou até articulação política.

Professor de direito público, Antônio Rodrigo Machado destaca que as casas legislativas têm comissões próprias para controle de compatibilidade dos textos em tramitação, de acordo com a Constituição Federal e com a Lei Orgânica. "Nenhum órgão pode deixar passar uma norma que fira essas premissas. E, para que seja aprovada, ela precisa passar pelo controle da Casa. No caso, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) ; depois, por votação; e, em seguida, pelo governador", pontua.

Antônio avalia ser comum entre os Poderes dar sinal verde para normas, mesmo quando há ciência da inconstitucionalidade delas, para manter "uma boa imagem política". "Dali a um, dois ou três anos, aquela regra deixa de valer após julgamento judicial. E isso é ruim porque envolve um tempo gasto pelos servidores, deputados e funcionários que poderiam ser usados para fiscalizar o poder público", avalia o professor.

Cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB), David Verge Fleischer pontua que esse tipo de movimento é frequente na política. "Os deputados querem satisfazer as próprias demandas, embora a proposta possa ser inconstitucional. Dessa forma, eles (os parlamentares) ficam bem com o eleitorado. É articulação", define.

Eficiência

Questionado sobre as normas sancionadas na atual legislatura, mas derrubadas pelo Judiciário, o presidente da Câmara Legislativa (CLDF), Rafael Prudente (MDB), argumenta que "todo processo pode ter erros". "Temos comissões muito competentes. Tivemos quase mil proposições apreciadas em Plenário no mandato (de 2019 a 2022), e o número de leis consideradas inconstitucionais é mínimo. Não vejo, de forma alguma, que estejamos fazendo um retrabalho, porque o número é extremamente reduzido. É praticamente 2% do que tramita na Casa", destaca.

Dados do Núcleo de Informatização da Legislação da CLDF sobre as normas publicadas entre 2019 e 2021 mostram que a Câmara aprovou 997 proposições. Desse total, 24 (2,4%) foram declaradas total ou parcialmente inconstitucionais pelo TJDFT ou pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), segundo o departamento. À reportagem, a presidente da CCJ, Jaqueline Silva (PTB), comenta que, em diversos casos, a análise de constitucionalidade não é simples e que o próprio Poder Judiciário difere no entendimento sobre temas.

"A análise é subjetiva. No ano passado, foram protocoladas 1.044 proposições na CLDF. Dessas, mais de 400 passaram pela CCJ e pelo Plenário. Sendo assim, esse número de leis ou decretos considerados inconstitucionais representa uma pequena porcentagem do total de processos concluídos. As assessorias dos deputados, bem como os técnicos da Câmara, são bastante qualificadas, e o baixo percentual retrata todo o cuidado (tido) na elaboração das leis e dos pareceres. Porém, como essa avaliação não é uma ciência exata, sempre ocorrerão divergências quanto à interpretação", analisa a distrital.

Complexidade

Advogada constitucionalista e especialista em administração pública pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Vera Chemim ressalta que o processo judicial de apreciação das normas sancionadas envolve muitos fatores. "Temos duas resoluções. A primeira trata da inconstitucionalidade formal, que significa aprovar a lei sem adotar todos os procedimentos previstos e sem inserir dispositivos necessários. Alguns exemplos são: não ter o quórum necessário ou os turnos (para votação) que determinada proposta exige. A outra é a inconstitucionalidade material, que ocorre quando não se segue algo preconizado na Constituição, como ferir algum tipo de liberdade de culto", exemplifica (leia Raio-X).

Vera apresenta outra possibilidade em que uma proposição sancionada é passível de dúvidas na Justiça. Isso inclui textos que não seguem as técnicas legislativas. "Se a lei traz um conteúdo que permite dupla interpretação, isso pode gerar questionamentos. Temos de lembrar que esse tema é muito complexo e que, às vezes, na Suprema Corte, temos avaliações sobre a inconstitucionalidade que ficam em seis votos a cinco, com ministros que mudam de opinião no meio do julgamento. Ou seja, o tema que permite muitas interpretações", conclui a advogada.

*Estagiário sob a supervisão de Jéssica Eufrásio

 

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pri-2002-justicadf (foto: pri-2002-justicadf)

 

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Letra morta

Além dos julgamentos sobre a constitucionalidade de uma lei, há normas sancionadas que não têm execução pela falta de detalhamento e pela consequente ausência de fiscalização. Essas são conhecidas como "letra morta". Especialista em direito público e advogada, Hanna Gomes destaca que a complexidade do sistema legislativo favorece a criação de regras que, posteriormente, precisam de novas publicações para regulamentá-las e definir os órgãos responsáveis pela supervisão delas e pela punição em caso de descumprimento.

"Nossa sociedade é, em geral, regulada pela punição, seja penal, civil ou administrativa. Isto é, só consideramos ou obedecemos leis que impõem alguma sanção ou limite à nossa vida. Ninguém deixa de pilotar sem capacete para proteger a própria vida, mas porque pode ser punido. Em geral, as pessoas não deixam de beber e dirigir porque é perigoso ou porque é crime, mas porque têm medo de encontrar uma blitz. Se vivêssemos em uma sociedade consciente, justa e igualitária, não precisaríamos de regulamentação ou fiscalização para fazer valer as normas. E muitas regras existentes não seriam necessárias", avalia Hanna.

Advogado e professor da Universidade Católica de Brasília (UCB), Caio Morau acrescenta que muitas leis são inócuas e não apresentam mudanças sólidas na sociedade. "Algumas são muito genéricas ou subjetivas e não têm um nível de concretude. Nesses casos, elas enfrentam a falta de pragmatismo. Mas vale ressaltar que há aquelas que não precisam de regulamentação, pois têm detalhamento suficiente", ressalta.

O professor exemplifica casos em que houve aprovação de normas distritais que acabaram sem aplicação, pela ausência de "razoabilidade". "Existe a Lei nº 1.722/1997, que obrigava o governo a criar faixas de pedestres no Eixão. Mas imagine o risco de colocar isso em uma via expressa de 80km/h. O texto determinava que, nos horários de pico, policiais militares deveriam se posicionar nesses pontos, para controlar o fluxo do tráfego. Outra lei, a nº 2.216 de 1998, previa a instalação de buzina com música ou jingles nos caminhões de gás e veículos que vendiam bens ou serviços. Caso ela não fosse trocada, haveria multa de quase R$ 300. A lei foi solenemente ignorada", relembra Caio. (EHP e PG)

 

Direitos fundamentais

"Para falar sobre a inconstitucionalidade, precisamos dar um passo para trás. Com a revolução francesa, tivemos o processo de ser necessária a vontade popular para se ter uma lei. E há um parlamento que representa o povo, que cria as normas. Ou seja, é a população que cria essa norma. Depois, houve o movimento da Constituição, que reúne as normas para proteger as liberdades mais importantes. Isso é um pacto geracional, e as leis precisam se adequar a essa norma suprema. A existência de dúvidas sobre a assertividade do parlamento tirou o que se chama do controle de constitucionalidade, e o juiz pode examinar se uma lei é constitucional ou não. Isso ocorre quando uma regra existe, mas não deveria ter nascido. Com muita frequência, elas afrontam direitos fundamentais, como a separação dos três poderes. Por isso, o freio e o contrapeso, para pôr limites a qualquer tendência de abuso de poder."

Antônio Carlos de Freitas Júnior, advogado e professor de direito constitucional

 

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