Legislação

Lei Seca completa 14 anos salvando vidas no Distrito Federal

Mesmo com a redução de tragédias provocadas por quem assume o risco de dirigir embriagado, a dor das pessoas que perderam entes queridos comprova que ainda precisamos ser mais responsáveis

Arthur de Souza
postado em 18/06/2022 06:00
alcoolemia -  (crédito: thiago fagundes)
alcoolemia - (crédito: thiago fagundes)

"A Thami (Thamires) tinha 16 anos quando foi tirado o seu direito de vida, tão precocemente, por causa de uma irresponsabilidade", é dessa forma que Thaylene Rodrigues, 26 anos, descreve o acidente de trânsito sofrido por sua irmã, em 2009, em Valparaíso de Goiás. A tragédia aconteceu no ano seguinte à criação da Lei nº 11.705, conhecida como Lei Seca, que visa punir a alcoolemia ao volante. A triste coincidência é que Thamires morreu após ser atropelada por um motorista bêbado, segundo Thaylene. "Um policial, que não respeitou a faixa de pedestres, acabou avançando quando todos os outros carros haviam parado e a atropelou", relata.

  • Ferida aberta: a família e Elane Pires, irmã de Renan, vítima de acidente de trânsito Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • 16/06/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Lei seca 14 anos. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • alcoolemia thiago fagundes
  • Uma das ferramentas utilizadas pelos agentes do Detran é o bafômetro André Violatti/Esp. CB/D.A Press

Dados do Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) mostram que, em 2008 — primeiro ano de implantação da Lei Seca —,  2.633 condutores foram flagrados dirigindo sob influência de álcool. No ano seguinte, em que ocorreu o trágico sinistro que vitimou Thamires, houve um salto para 6.793 autuações. Completando 14 anos desde a sua criação, a legislação, combinada a um conjunto de esforços, faz efeito. Uma comparação entre a quantidade de motoristas alcoolizados, os sinistros fatais e as vítimas mortas no trânsito, atesta isso (veja o infográfico).

Ferida aberta

Apesar da redução, infelizmente, ainda existem pessoas que insistem em se arriscar e acabam assumindo a direção de um veículo depois de ingerir bebida alcoólica (confira Palavra de Especialista). Em 17 de abril, domingo de Páscoa, o casal de ciclistas Hilberto Oliveira da Silva, 47, e Vera Lúcia da Cruz Sampaio, 43, morreu e outra pessoa ficou gravemente ferida após serem atingidos por um veículo em Santa Maria. De acordo com informações da Polícia Militar (PMDF), a motorista, de 36 anos, envolvida no atropelamento, dirigia sob efeito do álcool. Ela foi submetida ao teste, que constatou a alcoolemia de 0,62 miligramas de álcool por litro de ar expelido (mg/L).

Dois meses após a tragédia, João Victor Oliveira Silva, 22, filho de Hilberto, conta o que sentiu no momento em que soube. "É algo que nunca imaginamos que vá acontecer com a gente. O sentimento é de que poderia ser evitado. O que mais dói é isso", lamenta. Ele conta que a família ainda está se reestruturando para seguir com a vida. "Uns se apegam aos outros. Porém, é uma ferida que todos colocam uma proteção, mas, por baixo, ela ainda está grande, com toda certeza", garante. Para João, a sensação é de impunidade. "A pessoa que cometeu o sinistro foi solta antes mesmo do enterro do meu pai e de sua esposa. A impunidade é clara. A pessoa tira a vida dos nossos entes queridos e a justiça tortura aqueles que ficaram vivos com essa falta de punibilidade", reclama o filho do ciclista.

Vazio sentido

Quase um mês após a morte de Renan Pires de Araújo, 33, a família do operador de áudio e vídeo tenta seguir com a vida. Ele morreu depois de ser atingido por Jessivan Leal Araújo, 30 — que estava bêbado — na DF-489, sentido Gama, enquanto trafegava com sua motocicleta pela via. O autor foi capturado pela PMDF e preso em flagrante, por homicídio culposo e embriaguez ao volante. O teste do bafômetro acusou 0,40 mg/l. Resultado acima de 0,34 mg/L, que é considerado crime de trânsito.

No dia do enterro de Renan, seu pai, Joel Gonçalves de Araújo, 72, disse ao Correio que, apesar do sofrimento, a família — como forma de honrar a memória do jovem e tentar suavizar a tristeza — mantiveram clima de leveza durante o velório. "É sofrido, porque perdi um filho. Os comentários mostram o quanto ele é querido. Ele não quer (que a família sofra), eu sei porque carreguei ele nos braços e foi isso que ele aprendeu comigo, a ser alegre", relatou Joel, à época.

Hoje, Vilma Pires dos Santos, 59, mãe do motociclista, conta que a família ainda tenta seguir o que foi dito pelo pai de Renan. "A família sente o vazio, a falta. Era uma pessoa que em tudo ele estava presente, preenchia o espaço. Não dá para mensurar (a falta que ele faz)", afirma. "A ficha vem caindo a todo instante. A gente chora, sofre e é isso. Não sabemos se um dia essa ferida vai cicatrizar. Ele era meus braços, minhas pernas. Não é fácil falar dele assim", emociona-se Vilma.

Uma das porta-vozes da família desde o sinistro fatal, Elane Pires, 45, tia de Renan, considera que a identificação, prisão e indiciamento do autor do crime trouxe, inicialmente, uma sensação de alívio a todos. "Mas, sinceramente, pensar sobre a justiça numa situação dessa não é fácil. A grande questão aqui é a ação do motorista. A opção que ele fez ao pegar seu carro, após consumir bebida alcoólica e estar alterado por conta da embriaguez", lamenta.

Fiscalização

Para o diretor científico da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), Flavio Adura, está muito bem documentado que o álcool está estreitamente ligado às mortes por sinistros de trânsito. "Mundialmente falando, cerca de 35 a 50% das sinistralidades nas vias se constata a presença de alcoolemia", alerta. "Mesmo com tendo consciência do antagonismo entre o consumo de álcool e a condução de veículos, muitos dirigem depois de beber, acreditando serem exceção à regra", comenta o diretor.

Segundo Flavio, para conduzir um veículo com segurança, o motorista deve ser capaz de realizar, sem hesitação, uma série contínua de movimentos com grande precisão e o álcool afeta negativamente essa segurança em dois aspectos: a sobrevivência e a performance. "A primeira considera impacto físico, quanto mais a pessoa tiver bebido, maior sua chance de morrer. Já a última, está ligada a redução da atenção, capacidade de avaliação crítica, além de prejudicar a percepção da velocidade e dos obstáculos da via", pontua. O diretor da Abramet completa afirmando que a Lei Seca é boa em sua essência e seus efeitos benéficos já são sentidos. "Mas urge que medidas de fiscalização sejam intensificadas e que toda a sociedade esteja unida no sentido de reprimir o binômio: beber e dirigir", atesta.

 

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Três perguntas para…

Víctor Minervino Quintiere, advogado criminalista, doutor em direito e professor de Direito Penal no programa da graduação e pós-graduação do Ceub.

Passados 14 anos da criação da Lei Seca, você considera que estamos no caminho certo?

Conhecida como Lei Seca, a norma, que completa 14 anos no próximo domingo (19/06), mudou os hábitos dos brasileiros. Dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) mostram que as mortes por lesões de trânsito vêm caindo ano a ano no Brasil depois de 2012. Diante desse cenário, penso que estamos no caminho certo. O momento agora, justamente em virtude dos mais de dez anos de vigência, pode ser o de atualizar questões previstas inicialmente como quantidade de álcool no sangue admitida, etc.

O que ainda pode ser feito pelas autoridades para diminuir as ocorrências com condutores alcoolizados?

Penso que o aprimoramento de medidas preventivas seja o melhor caminho. A conscientização da população, gerando o aprimoramento das condutas relacionadas a direção, é o melhor caminho. A política de prevenção deve ser instituída desde a infância, orientando os futuros motoristas que bebida alcoólica e direção não combinam. Também penso que devem ocorrer campanhas de conscientização para adolescentes e motoristas atuais sobre os riscos que a direção misturada com ingestão de bebidas alcoólicas pode gerar.


E a população? Como pode ajudar?

A população tem papel fundamental neste processo, pois, é a destinatária e maior beneficiada de políticas públicas como essa. A conversa sobre esse e outros temas começa em casa, passando pelos núcleos comunitários (escola, comunidade, igrejas, etc). Se educar deve vir primeiro do que a repressão, rever socialmente o conceito que temos sobre o álcool, porém, é difícil. O uso da bebida alcoólica está culturalmente presente na vida do brasileiro. É uma das poucas drogas consumidas — por ser lícita — com a família reunida. Para dirigir, porém, não se deve beber. O consumo, mesmo em doses baixas, prejudica a visão noturna, a capacidade crítica e de respeito a normas e regras, como a obrigatoriedade do uso do cinto de segurança e o respeito aos limites de velocidade.

Beber e dirigir: uma corresponsabilidade?

Hartmut Günther, professor de Psicologia Social e do Trânsito da Universidade de Brasília (UnB)

Dirigir é um comportamento social — envolve o motorista e outros participantes do trânsito. Logo, o que um faz ou deixa de fazer tem impacto sobre outros motoristas, motociclistas, ciclistas, pedestres, idosos e jovens. Quem bebe e dirige se coloca à margem do convívio social, e cabe ao Poder Público impedir que o infrator participe, durante algum tempo, do trânsito: retirar a carteira, impedir acesso a veículos, multas pesadas e/ou prisão.

Também cabe refletir sobre a responsabilidade de outros participantes diretos e indiretos neste convívio social: o infrator foi incentivado pelas mídias sociais alheias a consumir? Bebeu sozinho? Foi servido, especialmente quando já visivelmente bêbado, em algum estabelecimento? O responsável pelo comércio impediu que o cliente embriagado dirigisse? Ou seja, o lucro individual de um estabelecimento vale mais do que o bem estar público? A responsabilidade é de quem bebeu, conduziu um veículo e (quase) matou. Porém, dirigir é um ato social, não há como ignorar eventuais corresponsabilidades.

É necessário cobrar os fabricantes de bebidas e os meios que fazem propagandas de seu consumo. Em contrapartida aos gastos com as publicidades, as empresas envolvidas deveriam financiar atividades para a educação de trânsito, apontando riscos e consequências de beber e dirigir. Além disso, incluir, obrigatoriamente, nos programas de educação de trânsito, visitas em instituições de tratamento de ferimentos de sinistros. No caso de infratores com carteira de habilitação suspensa, serviços comunitários nesses locais, para reaver o direito de conduzir. Por fim, tornar dirigir e beber — quando provocar ferimentos e mortes — um crime inafiançável. A segurança no trânsito é responsabilidade de todos nós.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação