Há 50 anos, a recém-formada comunidade luterana de Brasília recebeu a proposta de uma colaboração mútua com a Kindernothhilfe (KNH) — órgão máximo de diaconia ligado à igrejas na Alemanha — para dar assistência educacional a crianças pobres em uma das regiões administrativas do Distrito Federal, nos moldes de programas realizados na Índia. O desafio foi enorme, porque não eram nem 30 famílias, com quase nenhuma experiência em assistência social.
Ainda assim, a tarefa foi aceita, afinal, a comunidade de Brasília nascia com um viés missionário. O primeiro passo foi procurar o espaço para a obra para que assim que viesse o dinheiro, já houvesse um endereço escolhido, que foi no Lote K da QNM 30 em Ceilândia. Tratativas com o governo resultaram na doação do terreno, e os marcos alemães serviram para dar início à construção, inaugurada em julho de 1974, com o nome Cantinho do Girassol, embora estivesse funcionando dois anos antes, com o programa de amparo à criança.
A arregimentação do público alvo foi feita pelos próprios membros da comunidade que, nos fins de semana, visitavam as moradias nos arredores fazendo inscrições das famílias a serem atendidas, segundo critério de baixa renda. A par disso, se promoveu eventos no Plano Piloto para angariar recursos, além de bazares e brechós na própria sede da obra social.
Sapatos do presidente
Todos os luteranos se envolveram em uma campanha de arrecadação de objetos e roupas destinados à venda nos bazares, inclusive eu, que na ocasião, fazia a cobertura jornalística da Presidência da República para o Correio Braziliense. Não tive dúvida em levar a notícia à filha do presidente, que tinha uma sala no Palácio do Planalto, próxima à da imprensa. Amália Lucy Geisel atendeu o meu pedido e, em poucos dias, reuniu em diversas sacolas pertences do pai: ternos escuros e sapatos pretos para doação.
Foi muito engraçado, no sábado seguinte, expor trajes imensos de um general alemão a uma freguesia que usava tamanhos menores. Ainda bem que para alguém serviu, porque todas as roupas, a preços simbólicos, foram vendidas.
Irmã Hulda
"Mais do que a alimentação e o vestuário, a criança precisa de amor", proclamava a Irmã Hulda Hertel, primeira diretora pedagógica do Cantinho do Girassol, administrado pela Casa de Diaconisas da Igreja Luterana. Ela sempre apontou a carência de afeto como um problema central na vida das crianças. A própria educadora nunca se furtou em demonstrar compreensão e carinho. Alta e de forte envergadura, Irmã Hulda, quando se abaixava no meio da criançada, erguia sozinha mais de três em seus braços. Pena não estar viva hoje para ver o jubileu de ouro da ação social que deu partida.
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Instalada em uma construção de alvenaria com três salas de aula, sala de professores e de administração, cozinha, área de serviço e um enorme salão para recreação, reuniões e cultos, a Creche, como passou a ser conhecida, atendeu, no primeiro ano, 60 crianças, filhos de mães que trabalhavam fora e as deixavam lá às 7h para pegá-las de volta às 17h30.
Nos anos seguintes, o atendimento foi ampliado passando a oferecer além da creche, pré-escola, acompanhamento escolar e cursos semi-profissionalizantes. Atualmente, são 515 crianças e adolescentes e, aproximadamente, 300 famílias, totalizando mais de 850 pessoas atendidas.
Três gerações
Em meio século de funcionamento, passaram por lá até três gerações, como é o caso da atual coordenadora pedagógica da educação infantil Luzenir Pereira Bonfim, 55 anos, — 29 deles no Cantinho do Girassol. "Meus irmãos foram criados na creche para meus pais trabalharem. Eu que os levava e buscava todos os dias e queria muito ficar lá, mas, na época, era só até os 7 anos", lembra.
Luzenir ficou adulta e passou a frequentar o curso de artesanato dado na entidade, teve duas filhas gêmeas, Tauane e Tâmara, matriculadas com nove meses. As duas saíram com 13 anos, quando a idade limite foi prorrogada. "As minhas filhas retornaram mais tarde como monitoras, a Tâmara tem ensino superior, com dois filhos: Maria Laura ficou no Cantinho até os cincos anos, enquanto Bernardo, de quatro, ainda continua", detalha Luzenir.
Tauane, também professora, trabalha em outra escola. "Gratidão é a minha palavra para esse lindo lugar", resume a coordenadora pedagógica, que conquistou o emprego quando as gêmeas ainda estavam na creche.
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No fim dos anos 1980, cessou a ajuda externa. Luteranos alemães passaram a focar nos irmãos do leste europeu, que começavam a enfrentar dificuldades com a queda do muro de Berlim, e as nações africanas que exigiam mais atenção caridosa do que o Brasil. Foi aí que a entidade filantrópica fincada em Ceilândia passou a ser mantida mediante convênios assinados com o Governo do Distrito Federal, além da ajuda da iniciativa privada em ações voltadas à saúde e ao ensino.
A partir das 8h deste sábado (9/7), os portões do Centro Social Luterano Cantinho do Girassol, como é o nome oficial, estarão abertos para receber a comunidade local, em uma grande confraternização pelos 50 anos da entidade. Em meio aos prédios, haverá barraquinhas para a venda de comidas típicas desta época do ano.
Estão previstas apresentações. Pode-se dizer que os alunos vão mostrar tudo o que sabem: balé, karatê, capoeira, exposição de artigos, oficina sustentável e música. Às 10h, terá início uma solenidade, na qual se deseja "celebrar e confraternizar na companhia das pessoas que apoiaram e apoiam esse importante trabalho, doando tempo, dons e bens, desde a fundação até o presente momento", convida Neri Räder, presidente da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana de Brasília (CECLB).
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