Humanidade /

As vítimas das violações de direitos humanos no Distrito Federal

No Dia Nacional dos Direitos Humanos, o Correio traz relatos da rotina de pessoas em situação de vulnerabilidade social que buscam acesso à alimentação, bem-estar e saúde

Pedro Marra
postado em 12/08/2022 05:52 / atualizado em 12/08/2022 11:46
A catadora Ruth Laranjeira da Silva conseguiu os benefícios depois de mais de um ano de tentativas -  (crédito:  Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
A catadora Ruth Laranjeira da Silva conseguiu os benefícios depois de mais de um ano de tentativas - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Há seis meses que Jean Rodrigo Feitosa, 46 anos, mora em um barraco de madeira com lona na frente do Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) de Taguatinga Norte. Quando tenta receber os Benefícios Eventuais do Governo do Distrito Federal (GDF), não consegue. Ele vai aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), mas sai sem obter os auxílios. “Creio que a restrição deve ser por causa do meu passado de 19 anos de cadeia (por tráfico de drogas e roubo), onde passei a ler muito e aprendi que a gente tem direito também”, emociona-se. Jean faz parte de uma triste estatística que configura o DF como a segunda unidade federativa com mais denúncias de violações dos direitos humanos no país. São 122 por 100 mil habitantes na capital da República, atrás apenas do Rio de Janeiro, que tem 156. Os dados são do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), de 1º de janeiro a 30 de junho deste ano.

Jean acrescenta que começou a fazer “bico” como lavador de carros em Taguatinga Norte e tenta buscar o Auxílio Aluguel (de até R$ 600) para ter uma moradia. Ele diz que o governo local paga o primeiro mês, mas, a partir do segundo fica pendente. “A gente tem que se virar para poder pagar uma casa alugada, porque não temos estabilidade para permanecer em uma situação mais favorável, e a Constituição diz que todos têm direito (à moradia)”, observa.

Nesta sexta-feira (12/8), no Dia Nacional dos Direitos Humanos, criado em homenagem à líder sindical Margarida Maria Alves — assassinada com um tiro de espingarda em 1983 por lutar pelos trabalhadoras do campo — o Correio traz histórias como a de Jean, realidade daqueles que buscam o básico para sobreviver e não conseguem acesso à alimentação, saúde e bem-estar, especificados na Declaração Universal dos Direitos Humanos desde 1948.

Na capital do país, a violação dos direitos humanos subiu 82% no segundo semestre de 2021 em relação ao primeiro semestre de 2022, com alta de 69 para 126 casos registrados pelo MMFDH. Ricardo de Souza Oliveira, 34, estrá sem receber o Auxílio Calamidade (R$ 408) e o Cartão Prato Cheio (R$ 250). “O básico seria o necessário, porque também estou sem o Auxílio Aluguel (R$ 600), o que iria me ajudar bastante a sair da rua”, lamenta.

Outra vítima da violação desses direitos é a moradora da QNN 24, em Ceilândia Sul Juscelina Maria Cardoso, 54, desempregada há sete anos. Ela tenta receber o Cadastro Único (CadÚnico) desde o mês passado no Cras) da cidade, mas não consegue por meio do telefone do GDF 156 e nem pelo agendamento on-line da Secretaria de Desenvolvimento Social. "Procuro benefícios para ajudar na alimentação em casa, onde moro de favor junto com a minha filha, de 15 anos", diz. 

  • 10/08/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Violações dos direitos humanos. Taguatinga Centro POP, Centro de Referência Especializada para População em Situação de Rua Unidade Taguatinga. Ricardo de Souza Oliveira. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • 10/08/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Violações dos direitos humanos. Taguatinga Centro POP, Centro de Referência Especializada para População em Situação de Rua Unidade Taguatinga. Luiz Pereira da Silva. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • 03/08/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Violações dos direitos humanos. Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Unidade Ceilândia Sul. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • 03/08/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Violações dos direitos humanos. Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Unidade Ceilândia Sul. Célia Vieira de Moura Bessa, moradora de Ceilândia. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press
  • 03/08/2022 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasilia - DF - Violações dos direitos humanos. Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Unidade Ceilândia Sul. Célia Vieira de Moura Bessa, moradora de Ceilândia. Marcelo Ferreira/CB/D.A Press

Juscelina, que faz bico de faxineira e entrega currículo diariamente em busca de emprego, lamenta ter que pagar conta de água e de luz sendo dependente dos benefícios. “Ainda tenho que passar por isso aqui de dormir em frente ao Cras, porque tento receber os auxílios, mas é cansativo subir todos os dias a pé para cá, sem contar que fico com medo de chegar e não receber nada”, desabafa a moradora da região.

"Queria mesmo é ver a minha geladeira cheia"

Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB), Maria Lúcia Lopes justifica essa alta dos números à desigualdade social no DF, o que gera consequências, como a violação dos direitos humanos. "O contexto da pandemia piorou a crise estrutural do capital, que levou ao aumento do desemprego, à redução da participação na renda geral da sociedade, e isso vai repercutir em fome, em situações precárias de vida, e vamos perceber o número elevado das pessoas em situação de rua", analisa a doutora em política social.

Divulgado em junho deste ano, o estudo da Companhia de Planejamento do DF (Codeplan) — atual Instituto de Pesquisa e Estatística do DF (Ipedf) — mostra que 2,9 mil pessoas vivem em situação de rua na capital federal, sendo que 29,2% estão nessa condição há mais de dez anos. Outros 38,2% da população em vulnerabilidade social disseram que foram para a rua desde o início da crise sanitária da covid-19. “Faltam estratégias consistentes e responsáveis do GDF para enfrentar essas adversidades”, conclui a assistente social.

Há quem consiga auxílios do CadÚnico, mas depois de muito tempo. É o caso de Ruth Laranjeira da Silva, 29, que somente na última quarta-feira garantiu os programas sociais do governo federal no Cras da Estrutural, pendentes desde maio de 2021. Moradora do bairro, ela andou 5km a pé até a unidade junto com o marido, Marcos Vinicius dos Santos, 33, e os filhos Ágata Lorrane, 3, e Vinicius da Silva, de oito meses.

Enquanto aguardava a esposa sair do atendimento, Marcos protegia a filha da poeira vinda do lixão da Estrutural. “Ela vai esperar mais ainda para sair os benefícios, que são bons, mas demoraram muito para a gente que trabalha de bico”, reclama o pintor de carros. A esposa dele conta que também não conseguiu agendar o atendimento pelo telefone 156 e nem pelo site da Sedes.

"Queria mesmo é ver a minha geladeira cheia, mas não dá, porque as coisas no mercado estão muito caras, apesar do Prato Cheio me ajudar", desabafa a catadora de materiais recicláveis, que ganha R$ 200 a cada 15 dias. A realidade de Ruth é outro exemplo entre as violações de direitos humanos na categoria de assistência aos desamparados, que dobrou de quantidade no primeiro semestre de 2021 em relação ao mesmo período deste ano. Os casos subiram de 49 para 98.

A dificuldade de levar o básico à mesa de casa é evidenciada ainda pelos dados do MMFDH. Segundo a pasta federal, na categoria alimentação, a quantidade de violações dos direitos humanos teve uma leve queda no DF, de 167 para 169 casos do primeiro semestre do ano passado para cá.

Carências básicas

Na avaliação de Thiago Sorrentino, professor de Direito do Estado no Ibmec, a capital federal possui uma situação atípica por faltar atendimento de carências básicas, como saúde, e focar a atenção dos melhores serviços de segurança no Plano Piloto do que em outras áreas, como o Entorno do DF. “Em relação a outras áreas do Distrito Federal, oferece condições um pouco melhores à população pobre, ainda aquém do nível civilizatório mínimo”, afirma.

Sorrentino acredita que o DF tem mais registros de violações dos direitos humanos por habitante do que no Rio de Janeiro por conta dos incentivos de acesso aos canais de denúncias. “Os habitantes do Distrito Federal tendem a ter mais conhecimento e mais facilidade para buscar o auxílio estatal para a proteção de seus direitos”, opina o professor.

A Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes) informa que os 29 Cras (duas unidades inauguradas e uma reaberta) realizaram 328,6 mil atendimentos às famílias do DF no primeiro semestre deste ano. "Quanto à demanda espontânea, é importante destacar que a pasta faz gestão dos atendimentos de fato realizados e não dos não realizados", fecha a nota. No ano passado inteiro, foram feitos 510,5 mil atendimentos.

Sistema prisional

Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Advogados do Brasil Seccional do DF (OAB-DF), Idamar Borges explica que a maioria das denúncias que recebe são sobre o sistema penitenciário: maus tratos, tortura e comida estragada. “Cerca de 99% do que recebemos é pelo canal de denúncia. Muitas vezes, recebemos a informação abstrata da mãe de um reeducando dizendo que o filho foi agredido, mas eles têm receio de se identificar por medo de represália”, conta.

Na maioria das vezes, quando a comissão reúne provas suficientes para investigar uma denúncia, encaminha um ofício ao Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). A depender do caso, o grupo de advogados encaminha o documento diretamente à Vara de Execuções Penais (VEP), do Tribunal de Justiça do DF e dos Territórios (TJDFT).

Idamar destaca que a equipe também está aberta a receber outros tipos de denúncias, como de pessoas em situação de vulnerabilidade social. “A maioria dos reeducandos tem assistência da família ou advogado. A população de rua, por exemplo, mesmo com apoio de algum órgão social, é a mais vulnerável, com risco de sofrer alguma violência física, até mesmo da polícia”, avalia o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF.

Presidente do Conselho Distrital de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (CDPDDH), Paloma Pediani, afirma que a cada dez denúncias que a equipe recebe por meio do Disque 100, metade está relacionada ao sistema prisional. As demais são por moradia, infraestrutura, saneamento básico e pessoa com deficiência. "A partir dessa parceria com o Disque 100, aumentou 150% a nossa demanda enquanto conselho, com mais canais de atendimento para denúncias", analisa.

De janeiro a junho de 2021, o Conselho Distrital de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos registrou 91 atendimentos de denúncias de violação dos direitos humanos. Aproximadamente 80% das notificações estão relacionadas a crianças. No mesmo período deste ano, 210 casos foram atendidos — um aumento de 130% nas ocorrências.

Paloma esclarece que a equipe faz parceria com o poder público e entidades privadas, mas o principal trabalho é acolher a denúncia, verificar se existiu e se houve violação dos direitos humanos. Em seguida, são enviados ofícios, parecer e atualizações aos órgãos competentes. "Somente em julho, o conselho recebeu 17 denúncias do sistema prisional”, informa a especialista.

Denúncias de violações dos direitos humanos nos estados e no DF

1º - Rio de Janeiro: 156
2º - Distrito Federal: 122
3º - Rio Grande do Norte: 117
4º - São Paulo: 101
5º - Mato Grosso do Sul: 101
6º - Espírito Santo: 92
7º - Minas Gerais: 92
8º - Amazônia: 89
9º - Santa Catarina: 84
10º - Rio Grande do Sul: 83

* Período: primeiro semestre de 2022 (por 100 mil habitantes)

Fonte: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)

Cadastro Único

O Cadastro Único (CadÚnico) é coordenado nacionalmente pelo Ministério da Cidadania e no DF pela Sedes. O Cadastro é obrigatoriamente utilizado para seleção de diversos outros programas, projetos, serviços e benefícios sociais, tais como: Auxílio Brasil, DF Social, Tarifa Social de Energia Elétrica; Tarifa Social de Água; Carteira do Idoso; isenção de taxas para concursos públicos; Telefone Social, aposentadoria para segurado facultativo sem renda própria (que se dedique exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua residência), entre outros.

O CadÚnico é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda, que são aquelas que possuem renda mensal por pessoa (renda per capita) de até meio salário mínimo (R$ 606) ou renda familiar total de até três salários mínimos (R$ 3,6 mil).

Defesa de Direitos

Conselho Distrital de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos (CDPDDH)
Telefone Fixo: 2244-1286/ 1288
E-mails: cdpddh@gmail.com / cdpddh@sejus.df.gov.br
Endereço: SAAN, Quadra 01, lote C, 3° andar
Horário de atendimento: de segunda a sexta-feira, das 9h às 13h e das 14h às 17h

Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF
E-mail: denúncias@oabdf.com
Secretaria-geral das Comissões (SGC): sgc2@oabdf.com

Disque 100
Serviço de disseminação de informações sobre direitos de grupos vulneráveis e de denúncias de violações de direitos humanos

Colaborou Ana Isabel Mansur

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação