OCUPAÇÃO DO SOLO

Mudanças na área da Flona de Brasília podem afetar mais de 40 mil pessoas

Projeto aprovado no Senado reduz espaço da Flona em 39,6%. Ambientalistas criticam decisão, mas os cerca de 40 mil moradores da região apoiam a proposta, que segue para sanção presidencial

Ana Isabel Mansur
postado em 12/08/2022 05:49 / atualizado em 12/08/2022 12:53
Se sancionada a lei, mudanças afetarão assentamentos 26 de Setembro e Maranata -  (crédito:  Minervino Júnior/CB)
Se sancionada a lei, mudanças afetarão assentamentos 26 de Setembro e Maranata - (crédito: Minervino Júnior/CB)

Os moradores dos assentamentos 26 de Setembro e Maranata, próximos a Taguatinga e Vicente Pires, estão perto de ver a regularização dos terrenos virar realidade. Um projeto de lei aprovado pelo plenário do Senado, na última quarta-feira (10/8), abriu espaço para a regularização das áreas, onde residem mais de 40 mil pessoas, ao diminuir a Floresta Nacional de Brasília (Flona). A ocupação humana começou há, pelo menos, 26 anos, mas o decreto de criação da floresta, que completou 23 anos em junho, é posterior aos assentamentos. A deputada federal Flávia Arruda (PL-DF), autora do projeto, reconhece o aumento desordenado das ocupações. "É essencial delimitar a área para impedir novos crescimentos que impactem a Flona, além da necessidade de dar dignidade a essas pessoas, que não têm acesso a políticas públicas básicas e sofrem diariamente."

A proposta seguiu para aprovação presidencial. Caso seja sancionada, a Flona será reduzida em 39,6%, passando de 9.336 hectares para 5.640 hectares. A perda corresponderá a mais de 5,1 mil campos de futebol. Hoje, a floresta é dividida em quatro áreas: os dois locais onde estão os assentamentos deixarão de existir, possibilitando a regularização, e os demais espaços serão reconfigurados. O projeto de lei determina que áreas de compensação ambiental deverão ser criadas futuramente. A Flona é administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que não retornou os questionamentos do Correio até o fechamento desta edição. 

O senador Izalci Lucas (PSDB-DF) foi o relator do projeto da deputada Flávia Arruda no Senado. Ele é autor de matéria parecida, já aprovada pelos senadores e em tramitação na Câmara dos Deputados. Defensor de políticas públicas de habitação, o parlamentar ressaltou as dificuldades enfrentadas pelos habitantes das regiões.

“Existe o mundo virtual e o real. O mundo real é o da ponta, onde 40 mil pessoas estão morando nesses locais, sem infraestrutura alguma. Quem conhece o mundo real jamais diria que não tem como regularizar. Como Brasília não tem uma política de habitação, o governo perdeu o controle das ocupações. Isso tem de ser visto antes, não depois. As ocupações já estavam lá antes do parque, claro que não tinha o número de hoje, mas não houve controle — muito pelo contrário. Como tirar, agora, 40 mil pessoas de lá? Faltam políticas públicas de moradia. Não tinha como não fazer (a exclusão das áreas de conservação para regularização fudiária).”

Pelas ruas da 26 de Setembro, que concentra a maior parte dos moradores futuramente beneficiados pela regularização, o sol quente do cerrado divide o espaço da paisagem com nuvens densas de poeira. As vias, carentes de asfaltamento e esgoto. Zildete da Silva, 43 anos, conhece bem as dificuldades da falta de infraestrutura básica. A moradora do local desde 2002 montou um comércio ao lado de casa e precisa lavar o estabelecimento três vezes ao dia por conta da poeira. "Basta passar um carro, e já era", reclama. Ela mora com o marido e os dois filhos, estudantes. Mesmo com ônibus escolares, os jovens, de 21 e 14 anos, precisam levar uma muda de roupas extra para trocar no colégio, por conta da poeira. Zildete sonha com as vias da cidade asfaltadas, esgotamento, abastecimento de água e rede de energia elétrica. "A gente fica sem luz dia sim, dia não. Água, só em poço."

O autônomo Evaldo da Silva, 57, também sofre com a carência de infraestrutura. Ao menos três vezes na semana, ele precisa buscar água na casa de um amigo, a algumas ruas de distância. "Hoje (ontem) mesmo, estamos sem água. Daqui a pouco vou lá buscar. Quem tem condições, coloca um poço em casa", relata o morador, para quem a situação pode ser ainda pior a depender do período do ano. "Agora, com a seca, minha cisterna secou", conta Evaldo, que comprou o terreno há quatro anos. "Não gosto de grileiros, acho muito injusto com quem, como eu, está aqui porque precisa, porque não tem outro lugar para morar, mas eles vêm, cercam o lugar, que continua vazio, para vender depois pelo triplo do preço. Não está certo", denuncia, apontando para um extenso muro de concreto ao lado de onde mora, que cerca uma grande área, desabitada.

Zildete precisa limpar a casa e a loja três vezes por dia, por conta da poeira
Zildete precisa limpar a casa e a loja três vezes por dia, por conta da poeira (foto: Minervino Júnior/CB)

Os poucos postes de iluminação espalhados pelo assentamento foram instalados pelos próprios moradores. "A gente se juntou e pagou. É a comunidade que luta." Evaldo enfrenta, ainda, a instabilidade da rede de energia. Como as instalações são precárias e temporárias, os picos de fornecimento são constantes. "Às vezes, a geladeira congela do nada e, horas depois, esquenta. Muita comida estraga."

Sebastião Ricardo Bastos Caixeta, presidente interino da Associação dos Moradores do 26 de Setembro (Amovs), comemora a aprovação do projeto de lei. "Somos uma cidade, de fato. Só precisamos desse reconhecimento. Vamos ter a presença do aparelho público com mais frequência, porque aqui, na realidade, o aparelho público só faz serviços paliativos. A comunidade sempre trabalhou muito por essa articulação. Precisamos de saneamento básico, de escolas, de Cras (Centros de Referência de Assistência Social). Na verdade, nossa cidade não tem nada", lamenta. 

Aspectos

Marly Santos da Silva, geógrafa e doutora em planejamento urbano, destaca que a Flona foi criada para proteger o Parque Nacional, justamente de ocupações humanas. "O que estamos vendo é exatamente isso. O fato consumado privilegia a regularização fundiária, porque, pensando na questão social, se não há riscos para a segurança das pessoas, em termos de desmoronamentos, não há novos gastos para transferir essas pessoas, desmatar outras áreas — porque aquele local já foi depredado — nem reverter o processo de ocupação. Mas, como fica o lado ambiental?", coloca a especialista, que questiona a efetividade da compensação ambiental. "Muitas vezes, não consegue atenuar, de fato, os malefícios da ocupação. Há, no DF, excesso de permissividade com parcelamentos irregulares", critica Marly, ao defender aproveitamento das regiões administrativas já estabelecidas para evitar a instalação de novas infraestruturas, sem necessidade de desmatamento da vegetação.

Lázaro Oliveira, mestre em ciências florestais e doutorando em agronomia, destaca três aspectos relacionados à nova delimitação da Flona: uso e ocupação irregular do solo, variável social e caráter ambiental. "O governo não fiscalizou, no passado, e por isso, teve o crescimento desses assentamentos. Agora, para resolver, é preciso regular o bairro para dar qualidade de vida para as pessoas. Aí entramos na variável social, que gera tranquilidade para essas comunidades", explica o especialista. "O problema ambiental entra nos processos de resolução das questões do solo e sociais, porque o Estado tem obrigação de respeitar a legislação ambiental. Então, tudo isso tem de ser levado em consideração durante um processo de regularização." 

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