Agosto é o mês do Patrimônio Cultural. No Distrito Federal, diversas lideranças lutam pela preservação da memória da capital federal, trabalho que é fundamental para a construção da identidade de Brasília. O Correio conversou com alguns desses guardiões para entender melhor os desafios daqueles que dedicam boa parte da vida para a preservação de bens culturais.
José Leme Galvão, mais conhecido como Seu Neca, trabalhou no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) por 35 anos. Mesmo aposentado, não deixou de somar forças na luta pela preservação do patrimônio da capital. Hoje, ele é vice-presidente da Associação dos Amigos do Teatro Nacional Claudio Santoro (Atena), entidade que surgiu ano passado reunindo pessoas em prol da preservação do monumento.
"Normalmente, o ativista é considerado um radical, e é necessário que o seja, em certa medida. Ele se torna um representante da vontade pública. Não queremos a preservação do [Teatro Nacional] Claudio Santoro por vontade própria. Fazemos isso pelo bem comum. Assim cuidamos da sociedade", esclarece. De acordo com Seu Neca, o que moveu o surgimento da associação foi o fato de o teatro estar há muito tempo fechado e a urgência das providências necessárias para a restauração do local. "Criamos a Atena para pressionar o Poder Público para que as coisas andem", explica.
No coração do DF, ao lado da Rodoviária do Plano Piloto, o Teatro Nacional foi projetado por Oscar Niemeyer em 1958. Integrante do Conjunto Urbanístico de Brasília (CUB), tombado como patrimônio da humanidade pela Unesco. O espaço encontra-se fechado desde 2014. As obras da Sala Martins Pena — por onde passaram nomes como Mercedes Sosa, Astor Piazzola, Yma Sumac, os balés russos Bolshoi e Kirov, o balé da Ópera de Paris, Paulo Autran, Fernanda Montenegro e Dulcina de Moraes — estão em andamento. Para o guardião, a Atena é resultante do acumulado de exigências que já existiam antes de a associação nascer e, como representante da sociedade, formado por artistas, jornalistas, arquitetos, turismólogos e produtores culturais, pleiteia um acompanhamento qualificado das obras em execução.
Vila Paranoá
A luta pela memória da antiga Vila Paranoá, onde os operários da construção da barragem do lago homônimo moravam, é o que move o artista plástico Gersion de Castro. Ele cresceu na vila pioneira, viu a fixação da cidade em 1988 e a remoção dos moradores para o local mais afastado da barragem, onde hoje é o Paranoá, no ano seguinte. Hoje, com 53 anos, o guardião conta que a luta para conservar as construções remanescentes está presente desde a infância, quando já fazia desenhos retratando a realidade que o cercava.
Formado pela Universidade de Brasília (UnB), o seu trabalho de conclusão no curso de artes visuais resultou no livro A história de uma cidade invisível: Vila Paranoá e seus quintais de memórias, a partir do qual o artista fez um mapa afetivo da região. "Esse trabalho fez com que a comunidade se mobilizasse e encaminhasse, em 2020, o pedido de tombamento de toda a área que vai desde a barragem até a parte norte da zona urbana do Paranoá, incluindo as ruínas que ficam à beira do lago. O tombamento provisório veio no ano passado", comemora. Agora, os esforços são para a confecção de um dossiê mais detalhado da área, documento que será encaminhado para o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do DF (Condepac) para que a região adquira o tombamento definitivo.
No local onde era a vila, restaram algumas edificações que contam a história da cidade, como a escola e o posto de saúde, ambos feito de lata, a Churrascaria Paranoá, que, à época da construção da barragem, servia de cantina para os operários da obra, feita de madeira, além da Igreja São Geraldo, tombada em 1993 e que desabou em 2005. "Ela foi reconstruída depois de muita luta da comunidade, em 2013. Tivemos que recorrer ao Ministério Público, que acionou a cúria e demais órgãos competentes para a reconstrução", lembra Gersion. "Os bens são tombados, mas o Poder Público não cuida. Há uma dificuldade e uma inércia para tomar as medidas necessárias para a preservação. Na periferia, fica ainda mais difícil. A nossa luta é que o espaço seja tombado, preservado e usado pela comunidade", defende.
Pedra fundamental
A Pedra Fundamental, localizada a 7km do centro de Planaltina, foi erguida em 7 de setembro de 1922, no governo do então presidente Epitácio Pessoa. O monumento foi criado para celebrar o centenário da Independência do Brasil e marcar a construção da nova capital federal, inaugurada somente 38 anos depois. A obra se materializa como o principal desdobramento que demarca todo o território do Distrito Federal.
O professor Robson Eleutério, historiador e coordenador do Ecomuseu Pedra Fundamental, é um dos guardiões do patrimônio histórico. Para ele, o museu faz parte da história da cidade e tem grande relevância para a comunidade brasiliense, sendo um lugar de grande relevância para a sociedade de Brasília.
Atualmente, existem vários grupos que atuam dentro do museu, mas os pilares fundamentais para o bom funcionamento do monumento histórico são: comunidade, meio ambiente e cultura. "O museu da pedra tem grande representatividade e uma das nossas preocupações com o local é a falta de investimentos por parte do poder público. Não existe um fundo para o patrimônio, quando é necessário fazer alguma reparação, na pedra, que já precisou passar por isso algumas vezes, é necessário tentar conseguir uma emenda parlamentar ou um projeto. Essa medida demora de um a dois anos de espera, são questões que não podem ser implementadas imediatamente", lamenta. "O próprio Fundo de Apoio à Cultura (FAC) tem recursos irrisórios, o que dificulta que se desenvolva uma ação mais contundente", avalia.
Por outro lado, Robson comemora algumas conquistas do museu nos últimos anos. "Em 7 de setembro do ano passado, houve o depósito da cápsula do tempo envolvendo as escolas públicas de Brasília, momento importante, professor e aluno trabalhando a questão patrimonial em sala de aula, um marco histórico. Outra conquista é que no mínimo 20 entidades fazem atividades diariamente na Pedra Fundamental, são grupos de ciclistas, de caminhadas e de produtores. Nosso objetivo é fazer com que haja cada vez mais o envolvimento da comunidade e assim, manter a preservação do lugar, uma vez que não existe política de segurança pública para o local".
Legislação
O juiz Carlos Frederico Maroja de Medeiros, titular da Vara do Meio Ambiente, Desenvolvimento Urbano e Fundiário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), costuma promover debates amplos em casos que envolvem o patrimônio da capital. Nas audiências, as diversas partes interessadas têm espaço de fala, incluindo a comunidade e especialistas. "Algumas comunidades, como as de Planaltina e da Vila Planalto, têm um certo engajamento para com as questões relativas ao patrimônio cultural. Contudo, infelizmente há uma certa desatenção da representação política e da população brasiliense como um todo sobre a importância da preservação patrimonial, especialmente no que tange à proteção ao tombamento da cidade como patrimônio histórico e cultural da Humanidade", explica o magistrado.
Segundo o juiz Maroja, existe uma legislação bastante abrangente e razoavelmente avançada sobre proteção patrimonial, que é interesse jurídico coletivo tutelado inclusive em âmbito constitucional. "Contudo, nem sempre a lei é adequadamente cumprida, resultando em um fenômeno que, hoje, se denomina Estado de Coisas Inconstitucional, ou seja, um generalizado desrespeito às normas constitucionais pelos mais variados estamentos sociais", avalia ele, que, recentemente, exigiu juridicamente do GDF um calendário de restauração do Conjunto Fazendinha, na Vila Planalto. "O ser humano precisa do aparato civilizacional para sobreviver com dignidade. Sem a civilização — que é expressão da cultura - somos animais frágeis", conclui.
IAB-DF
“'A comunidade é a melhor guardiã de seu patrimônio', disse o inovador designer e ex-presidente do Iphan Aloísio Magalhães. Neste mês do Patrimônio Cultural que se encerra, penso ser importante reconhecer a luta de lideranças do DF em defesa do seu patrimônio, principalmente dos bens que precisam ser preservados para além do Plano Piloto de Brasília. Acompanho, desde que cheguei a Brasília, há mais de 15 anos, as ações de algumas comunidades contra a destruição de seu patrimônio, com destaque para as lideranças de Planaltina. O Centro Histórico de Planaltina é o único assentamento urbano do DF onde ainda é possível ver exemplares arquitetônicos que vão do colonial, passando pelo ecletismo e art deco, chegando ao modernismo. É fundamental que o GDF crie condições para dar respostas e, junto a essas populações, que se organiza para fazer o que é possível e cobrar, garantir a preservação do patrimônio cultural do DF, que é diverso, importante, e está espalhado por todo o território. Há muita potência e resistência nesses territórios, mostrando que Aloísio estava certíssimo".
Luiz Eduardo Sarmento, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do DF.
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