MEMÓRIA

Há 50 anos desaparecia Ana Lídia, criança assassinada em Brasília

Um dos assassinatos mais marcantes da história de Brasília ficou marcado pelo desaparecimento de provas, pistas ignoradas e um mistério sem solução: quem matou Ana Lídia?

Era uma terça-feira normal até o horário em que Ana Lídia sairia da escola. -  (crédito:  Arquivo Pessoal)
Era uma terça-feira normal até o horário em que Ana Lídia sairia da escola. - (crédito: Arquivo Pessoal)
Camilla Germano
Helena Dornelas
postado em 11/09/2023 06:00

Há 50 anos, em uma tarde de terça-feira, às 13h50, Ana Lídia Braga, de 7 anos, deixava sua casa, na 405 Norte, acompanhada dos pais, e seguia para a escola. A mãe, Eloyza Rossi Braga, a levou até a sala de aula, no colégio Madre Carmen Salles, na 605 Norte, onde cursava 1ª série do ensino fundamental pela manhã e, à tarde, tinha aulas de reforço e de piano. O casal deixou o local rumo ao trabalho.

Aquele 11 de setembro de 1973 seguia como qualquer outro dia. Rosa da Conceição Santana, empregada doméstica que trabalhava para os Braga há mais de 20 anos, foi até a escola buscar a criança, por volta das 16h30. No local, a diretora da instituição de ensino, irmã Celina, a informou que “Aninha” sequer tinha comparecido às aulas no turno vespertino. Preocupada, a diretora telefonou para Eloyza, que confirmou que havia deixado Ana Lídia na escola. Procurou desesperada o marido e pediu para que o filho mais velho e a namorada saíssem pelo bairro à procura da irmã. Às 17h, a família acionou a polícia sobre o desaparecimento.

A partir daí, começou a investigação do paradeiro da menina, que teria como desfecho um dos crimes mais bárbaros da história de Brasília.

As apurações da polícia começaram no Colégio Madre Carmen Salles, onde o jardineiro Benedito Duarte da Cunha teria visto a menina saindo da escola com um homem alto, de cabelo comprido loiro, calça verde e blusa branca. A descrição dada por Benedito batia com a descrição de Álvaro Henrique Braga, irmão mais velho e padrinho da menina.

Sem alarde ou resistência, a criança saiu com o misterioso homem pelo portão lateral do colégio e, mais para a frente, entrou num carro com outra pessoa, como foi confirmado por nova testemunha, que morava em uma ocupação localizada numa estrada de terra atrás do colégio. Esta foi a última vez que Ana Lídia teria sido vista com vida.

A vida dos Braga

Eloyza Rossi Braga e Álvaro Braga, os pais da menina, levavam uma vida tranquila como servidores públicos. Tinham três filhos, Cristina Elizabeth Braga, que tinha 20 anos à época, Álvaro Henrique Braga, de 18, e Ana Lídia. Caçula, Ana era considerada o xodó da família e muito protegida por todos. Não tinha costume de brincar nos pilotis do prédio, nem de sair de casa desacompanhada.

Desde agosto daquele ano, passou a fazer atividades à tarde na escola. Em 11 de setembro de 1973, usava um vestido xadrez, branco e azul, e uma saia vermelha. Ela tinha os cabelos loiros e os olhos azuis.

A relação entre Álvaro Henrique e Ana Lídia era bem próxima. Ao longo dos 50 anos do caso, Eloyza e Álvaro Braga, que já morreram, atestavam o bom relacionamento do filho com a irmã e que ele era muitas vezes protetor com a menina. As páginas do Correio em meio à investigação, entre 1973 e 1974, mostravam fotos de Álvaro Henrique e Ana Lídia juntos, enquanto ela era bebê.

No decorrer da investigação, Álvaro Henrique (que passará a ser chamado de Henrique no decorrer da reportagem), foi apontado como um dos suspeitos de envolvimento na morte de Ana Lídia, o que sempre foi negado pela família.

Na noite do desaparecimento de Ana, um funcionário de um supermercado da região encontrou uma carta endereçada a Álvaro Braga, em um saco de arroz. Na parte exterior da carta havia o nome dele, o endereço do apartamento e os dizeres: “Pai da menina raptada”. A família não tinha telefone residencial e, por isso, acreditava ter recebido contato dos sequestradores via carta.

A mensagem no interior da carta dizia: “Conforme o Sr. já sabe, a respeito de sua filhinha que está com nosco, ele estar passando bem. Quanto a devolução da mesma em troca queremos 500.000,00 mil cruzeiros, quantia esta que deverar ser entregue até às 9 horas do dia 14 próximo. no local próximo ao viaduto que atravessa o lago para o rumo de Sobradinho. Não podendo falar nada para a imprensa ou alguém que possam (sic) impedir este encontro pois caso contrário não terás sua filha de volta (sic)".

  • 25/05/1976. Crédito: Arquivo CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF. Carta de resgate de Ana Lídia enviada por seus supostos sequestradores Arquivo CB/CB/D.A Press

Em relatos sobre o caso, os familiares da menina se mantinham otimistas e esperançosos de que o sequestro de “Aninha” fosse uma “brincadeira”. Acreditavam ainda que o fato de não ter um telefone em casa impossibilitou algum contato dos sequestradores mais cedo.

Às 19h45, o delegado da 2ª Delegacia de Polícia, José Ribamar Morais, recebeu uma ligação anônima afirmando que estavam com Ana Lídia e queriam 2 milhões de cruzeiros pelo resgate, o equivalente, hoje, a R$ 250 mil. Ana Lídia foi colocada ao telefone e chorou pedindo pela mãe. Nenhum outro contato foi feito.

Até o fim da noite, policiais encontraram alguns pertences da menina espalhados pela região, como seu material escolar e a boneca Susi, que levava consigo na mochila. No dia seguinte, o caso teria uma nova reviravolta.

O corpo é encontrado

O corpo de Ana Lídia foi encontrado às 13h de quarta-feira, 12 de setembro, em uma vala no matagal perto do Centro Olímpico (CO) da Universidade de Brasília (UnB), pela polícia.

Mais de 120 homens e 50 viaturas atuaram nas buscas, sob o comando do delegado Alberto Leovigildo Lopes, da 2ª Delegacia Polícia. Todas as saídas da cidade ficaram em vigilância a fim de evitar uma possível fuga dos criminosos. Os policiais Hermes Fernandes de Souza, Antônio Moraes de Medeiros e um funcionário da Secretaria de Segurança Pública informaram que o corpo da menina estava em uma vala, coberta com pouca areia, com hematomas e sinais de estrangulamento.

Por volta das 15h, foram chamadas as freiras da escola onde Ana Lídia estudava, para reconhecerem o corpo. Após a confirmação da identidade, ela foi levada ao Instituto de Medicina Legal (IML) e, de lá, encaminhado para o velório, que ocorreu em 14 de setembro.

Até a última hora, o casal Álvaro e Eloyza Braga se mantinha esperançoso que a polícia encontrasse a filha com vida e prendesse o sequestrador. Álvaro disse à polícia, à época, que Ana Lídia não falava com estranhos e que se saiu da escola tranquilamente deveria ter sido com um conhecido.

Pouco depois de o corpo da menina ser encontrado e a famíli,a notificada, Álvaro teria dito que: “Tomara que não seja o que estou pensando. Depois disso, vêm coisas piores”. A reportagem de 11 de setembro de 2018, relembrou a fala do pai, que foi confirmada em depoimento pela irmã Sacrário, funcionária da escola em que Ana estudava e que estava na casa dos Braga no momento que a família recebeu a notícia da morte da menina.

  • O corpo da menina foi localizado em uma vala em matagal perto do Centro Olímpico (CO) da UnB, com sinais de violência Cláudio Alves/CB/D.A Press

Caso com vários suspeitos

No local onde o corpo foi deixado, duas marcas de coturno, dois preservativos e um lenço de papel com sêmen foram registrados pelos investigadores. A suspeita é de que a menina de 7 anos tenha sido assassinada entre as 4h e as 6h do dia 12 de setembro, por asfixia. O assassino manteve o rosto de Ana Lídia enfiado na terra, obstruindo as narinas e a boca até a menina não conseguir mais respirar. Ana Lídia estava com os cabelos cortados de maneira irregular e foi vítima, segundo comprovou o laudo do IML, de diversas violências antes e depois de morrer.

A família recebeu a informação de que a criança foi violentamente assassinada 22 horas depois do desaparecimento. A investigação começava por Henrique. O irmão mais velho da menina, de fato, tinha as mesmas características do suspeito. Porém, os pais afirmaram que o filho estava no carro com eles na hora em que deixaram a irmã, o que foi contestado por testemunhas oculares, que viram o banco traseiro do carro vazio.

A acusação pesou sobre o jovem por conta de suposto envolvimento com drogas à época. Ao ser interrogado, Henrique disse que só havia fumado maconha três vezes e havia pedido dinheiro emprestado aos pais para pagar um aborto clandestino da sua namorada, Gilma Ely Varella Albuquerque, que estaria grávida de um mês.

As investigações levaram a Raimundo Lacerda Duque. Ele foi apontado como um traficante de Brasília e que trabalhava com a mãe de Ana Lídia.

  • Raimundo Lacerda Duque (com as mãos para trás) e Álvaro Henrique Braga (de óculos), acusados do sequestro e assassinato de Ana Lídia, foram absolvidos pela Justiça Arquivo/CB/D.A Press

O surgimento de Duque nas investigações começou a levar a polícia para ligações mais perigosas. Não se sabe ao certo, mas uma das suspeitas era de que Henrique e Gilma haviam "vendido" Ana Lídia para Duque e mais um grupo de filhos de políticos influentes do Distrito Federal para quitar dívidas de drogas. A ideia inicial seria conseguir dinheiro do pai, que era funcionário federal.

De acordo com a cronologia das investigações, Henrique teria buscado a irmã na escola e a levado até Duque que, por sua vez, levou a menina até o sítio do senador capixaba Eurico Rezende, em Sobradinho. Lá, aguardavam o filho do senador, o Rezendinho, e Buzaidinho ou Alfredo Buzaid Júnior, filho do então Ministro da Justiça Alfredo Buzaid. A linha investigativa apurava o suposto abuso da menina seguido da desova próximo à UnB.

A presença de nomes de peso nas investigações atrasou e até impediu que o crime tivesse um desfecho. O suposto crime de Buzaidinho não era só uma mancha no currículo de seu pai, ministro de Estado, mas também uma afronta à própria imagem do regime militar como um símbolo de ordem, progresso e moralidade.

Não é possível cravar, mas a presença de filhos de homens poderosos no rol de acusados no inquérito desacelerou e deixou várias lacunas nas investigações.

Acusação e júri

Os indícios de envolvimento de Henrique e de Duque eram fortes o que motivou, quase um ano depois do crime, em 21 de junho de 1974, a prisão de ambos por determinação da 1ª e da 2ª Varas Criminais por denúncias de “extorsão, agressão física e administração de tóxicos”. A denúncia do Ministério Público colocava a retirada de Ana Lídia da escola sob responsabilidade de Henrique e a tortura, abuso e morte da menina na autoria de Duque

Eles ficaram presos por mais de um ano à espera do julgamento, até que foram a júri em 1975. No dia 16 de junho daquele ano, o juiz Dirceu Faria, da 2ª Vara Criminal, absolveu ambos os denunciados baseado na informação de que o crime havia sido combinado. O magistrado entendeu que não havia provas de que a dupla se conhecia, alegando terem se conhecido pela primeira vez no dia da prisão.

O MP então tentou recurso da decisão, ao apresentar provas da relação dos dois, com depoimentos de testemunhas. Mas, em 2 de dezembro de 1977, a 1ª Turma do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) manteve a decisão do juiz.

Apesar de ter sido absolvido no caso Ana Lídia, Duque foi condenado a três anos e nove meses de reclusão por falsidade ideológica e uso de documento falso.

Processo é reaberto na Justiça e crime prescreve pouco depois

Em 22 de setembro de 1982, o extenso processo de investigação foi reaberto pela Delegacia de Homicídios. A matéria do Correio que trata sobre a reabertura mostra que o delegado investigava o crime como “outro qualquer”. “Vou começar as investigações desde a ocorrência do fato até analisar o processo inteiro: trata-se de um trabalho árduo, cansativo, demorado; por enquanto, não posso dizer nada, aliás nem poderia, mesmo porque todos os suspeitos já foram checados pela Justiça; inclusive os indiciados foram absolvidos porque nada ficou provado contra eles nem contra filhos de políticos”, afirmou o delegado Carlos do Amaral Valadão.

Ao que se sabe, nada novo foi encontrado na segunda investigação. Não havia, contudo, nenhuma nova acusação envolvendo Duque e Henrique, porque, juridicamente, uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pelo mesmo crime. Em 11 de setembro de 1993, o crime de Ana Lídia prescreveu, ao completar 20 anos. Assim, mesmo se fossem encontrados, os suspeitos do caso não poderiam ser punidos pelo crime, mesmo se confessassem à polícia.

Após o desfecho do caso e absolvição de Henrique, a família Braga se mudou para o Rio de Janeiro. Eloyza morreu na capital carioca em março de 2005, e Álvaro, em 2011, sem nunca dar entrevista sobre o caso. Henrique é médico. Na data de publicação da reportagem do Correio sobre os 45 anos do caso, em 2018, os repórteres Renato Alves e Isa Stacciarini tentaram contato com ele via telefone, no consultório onde trabalhava. A secretária informou que ele não falaria sobre o assunto.

A mais recente declaração dele sobre o caso foi ao Estado de S. Paulo, em 2000. Henrique afirmou que foi torturado várias vezes devido à suspeita de envolvimento no assassinato. ‘‘O governo federal arranjou bodes expiatórios’’ e disse acreditar que a verdadeira história do assassinato de sua irmã jamais aparecerá. ‘‘Os presidentes estão mortos, os ministros envolvidos estão mortos e seus filhos estão mortos”, disse o irmão de Ana Lídia.

Duque morreu em 2005, em Anápolis (GO), aos 62 anos, por complicações decorrentes do alcoolismo. Em 2003, deu a última entrevista ao Correio, onde reafirmou sua inocência. “O crime foi uma coisa diabólica. Só Álvaro (Henrique) e eu pagamos o pato. Pra mim, Álvaro é inocente. Foi outro escolhido para bode expiatório”, afirmou.

Com informações do arquivo histórico do Correio Braziliense. Pesquisa de Francisco Lima Filho e Mauro Ribeiro, do Cedoc.

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