Literatura

De bilhetes a dinheiro! Sebos de Brasília catalogam achados dentro de livros

Itens raros e inusitados são descobertos constantemente e formam um acervo único e digno de ser compartilhado

Reunidos, os apetrechos se tornaram atração nas livrarias e têm chamado atenção pela raridade -  (crédito:  Minervino Júnior/CB)
Reunidos, os apetrechos se tornaram atração nas livrarias e têm chamado atenção pela raridade - (crédito: Minervino Júnior/CB)
postado em 18/12/2023 09:22 / atualizado em 18/12/2023 09:29

Cartas de amor, pedidos de desculpas, documentos datados do século passado, cédulas de dinheiro que já não circulam mais, cheques em branco, certidões de nascimento originais, bilhetes em várias línguas. Esses são apenas alguns exemplos de objetos encontrados dentro dos livros deixados em sebos de Brasília. Itens dignos de museu, os objetos contam histórias de vida emocionantes e aguçam o imaginário de quem os encontra. Reunidos, os apetrechos se tornaram atração nas livrarias e têm chamado atenção pela raridade.

Por já terem pertencido a alguém, os livros encontrados em sebos são únicos por si só. A forma como as páginas são passadas, o cheiro, as marcas, as anotações, as palavras destacadas com marca texto, entre outros detalhes, tornam únicos cada exemplar.

No entanto, além dessas peculiaridades, os objetos encontrados entre as páginas de cada livro dão ainda mais vida às histórias das pessoas que deixam os exemplares para trás.

  • Registros fotográficos são encontrados aos montes. E dinheiro também!
    Registros fotográficos são encontrados aos montes. E dinheiro também! Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Nas páginas dos livros, também são encontrados marcadores dos mais variados. Neste sebo na 406 Norte, eles estão disponíveis gratuitamente
    Nas páginas dos livros, também são encontrados marcadores dos mais variados. Neste sebo na 406 Norte, eles estão disponíveis gratuitamente Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Painel de itens esquecidos se tornou atração de sebo localizado na 405 norte
    Painel de itens esquecidos se tornou atração de sebo localizado na 405 norte Fotos: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Certidão de nascimento de uma pessoa nascida em 1992 foi encontrada em bom estado.
    Certidão de nascimento de uma pessoa nascida em 1992 foi encontrada em bom estado. Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Certidão de um casamento realizado no final dos anos 90 foi esquecida em um livro
    Certidão de um casamento realizado no final dos anos 90 foi esquecida em um livro Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Selos e moedas estrangeiras também aparecem entre os achados
    Selos e moedas estrangeiras também aparecem entre os achados Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Bilhete de amor escrito há 17 anos atrás perfeitamente conservado
    Bilhete de amor escrito há 17 anos atrás perfeitamente conservado Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Luana Pessoa guarda com cuidado e respeito cada objeto encontrado nos livros
    Luana Pessoa guarda com cuidado e respeito cada objeto encontrado nos livros Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Bilhetes em outras línguas também aparecem entre os itens esquecidos em livros
    Bilhetes em outras línguas também aparecem entre os itens esquecidos em livros Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Cida Caldas  guarda em sacolas plásticas cada  carta encontrada  nos livros
    Cida Caldas guarda em sacolas plásticas cada carta encontrada nos livros Minervino Júnior/CB/D.A.Press

Preciosidades

Cida Caldas, proprietária de um sebo na Asa Norte há 38 anos, chegou a realizar uma exposição com os itens encontrados nos livros. Além de entreter os leitores e clientes do sebo, a mostra, denominada Memória dos livros, serviu para que algumas pessoas encontrassem coisas esquecidas por elas nos exemplares deixados no local muito tempo antes. "São objetos dos mais variados possíveis. Flores secas, passagens aéreas, ingressos de shows que aconteceram há tempos atrás, bilhetes de trem na Europa. A gente fica imaginando que os livros também fizeram o trajeto percorrido pelos donos. Isso é muito interessante. A memória afetiva permanece e vai passando de leitor para leitor", afirmou.

Documentação importante em perfeito estado, como certidões de casamento e nascimento originais, documento de carro, carteira estudantil, cheques assinados, entre outros itens, também estão entre as preciosidades achadas. A proprietária conta que a ideia de começar a guardar os itens encontrados surgiu após a descoberta de uma carta de afeto. A partir de então, os objetos são reunidos em uma caixa. "Estamos dividindo por categoria e catalogando cada coisa. Batizamos a caixa de 'toscaixa', porque são sempre coisas inusitadas", contou Cida. "Um dos primeiros objetos que encontramos foi a carta de uma mãe para um filho, datada da década de 1930. Foi quando percebi que preciosidades podiam sair das páginas dos livros", acrescentou.

Luana Pessoa também tem um sebo e, desde que abriu o empreendimento, em 2016, sempre guarda os objetos encontrados. No local, foi montado um mural gigante onde os itens são expostos. "Eu sempre achei fascinante o poder dos livros de carregarem marcas das pessoas que os leem. Nós começamos com uma loja somente on-line e, logo que abrimos o sebo físico, tive a ideia de compartilhar com todo mundo, pois são coisas interessantes demais para ficarem guardadas", disse.

Segundo Luana, o item mais comovente já encontrado por ela em um livro foi uma carta de um filho para o pai. "O filho estava preso e relatou para o pai o tanto que a prisão o levava a valorizar as coisas simples da vida como estar em casa com a família, comer a comida feita pela mãe. Foi bem tocante", contou. "O que a gente mais encontra são cartas, bilhetes e fotografias. Já encontramos muito dinheiro também. Moedas antigas e atuais. Há uns meses atrás, encontramos R$ 130 dentro de um livro e tentamos encontrar o dono, mas nunca conseguimos", completou.

Reverência

As proprietárias dos sebos respeitam cada pedaço de história encontrado nos livros. Quando são achadas quantias em dinheiro, as cédulas ficam sempre guardadas junto às outras memórias. "Ficam como lembranças vividas, não gastamos o dinheiro não", garantiu Luana. Cada item achado é tratado com cuidado e respeito. "Tem muita coisa que não dá para expor, por serem coisas mais íntimas. Já chegamos a encontrar cartas de cinco páginas. Fotos de famílias inteiras reunidas nós também não expomos. Têm também bilhetes com conteúdos íntimos", compartilhou.

Luana conta ainda que já chegou a encontrar um livro que era feito de diário pelo antigo dono. "O homem estava em Paris e, cada vez que lia um capítulo, escrevia ao redor e ia descrevendo o lugar onde estava enquanto lia aquelas páginas e como estava se sentindo. No final, presenteou a noiva com o livro, um exemplar de Ilíada", declarou.

As dedicatórias encontradas nos livros também são emocionantes. "É uma mais linda do que a outra. Fico pensando como as pessoas tiveram coragem de se desfazer dos livros com mensagens tão tocantes. Tem de tudo, de pedidos de desculpas a declarações de amor. Como não podemos arrancar as páginas dos livros, sempre fotografamos as dedicatórias e guardamos", destacou. "A mensagem que tento passar com este mural de memórias é o potencial que os livros têm de aproximar as pessoas e carregar histórias", finalizou.

Pesquisa

Andrea Considera, museóloga e professora da Faculdade de Ciências da Informação da Universidade de Brasília (UnB), explica que há vários caminhos para desenvolver pesquisas em cima de cada objeto encontrado nos livros. "Dá para fazer análises profundas a partir deste universo, percebendo o tipo de literatura que aquele livro oferece e relacionando com o objeto encontrado ali dentro. Se os sebos começarem a catalogar a data de recebimento do livro, isto é, a data em que o dono se desfez do exemplar, é possível desenvolver pesquisas interessantes considerando o ano em que o exemplar foi impresso, a data máxima que esteve em posse daquela pessoa e o objeto esquecido lá dentro", analisou.

A professora explica que, para fins de pesquisa, seria interessante identificar cada objeto com o nome do livro onde foi achado. "Por trás do livro, tem uma pessoa que escolheu aquele conteúdo para ler e essa pessoa está entre o objeto e o próprio livro. Na museologia, trabalhamos mais focados nas pessoas que estão por trás dos objetos do que nos itens em si. Um objeto não entra no museu pela beleza ou pela forma, mas sim pela representatividade dele na humanidade", concluiu.

 


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