"Eu me vejo como parda, porque eu sou misturada, tenho várias descendências, mas não me identifico como negra", foi assim que a vendedora Adriana de Oliveira, de 35 anos, moradora no Recanto das Emas se apresentou. A ausência do saber sobre a respectiva raça não é uma realidade isolada. Segundo dados do Instituto Geográfico Brasileiro (IBGE) a população negra — pretos e pardos —, é o maior grupo étnico-racial do país e representa 55,5% das pessoas em território nacional. Uma pesquisa do DataFolha revelou que de 10 entrevistados que se autodeclaram pardos, seis não se consideram negros, o que desperta um questionamento do porquê essas pessoas não se identificaram como parte da população negra.
Para o professor Nelson Inocêncio, membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade de Brasília (UnB), a dificuldade das pessoas em se reconhecerem como negras é comum. "Na minha percepção, falta leitura, falta letramento; quem se autodeclara pardo deveria prestar mais atenção no peso dessa autodeclaração, elas não compreenderam que essa construção (de se identificar negro) tem muito a ver com o ativismo, com o movimento negro, com as lutas do movimento negro", disse.
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O motorista de aplicativo Ednaldo Sousa, 36, faz parte da maioria ainda sem percepção da raça. "Não me considero negro, porque uma pessoa que eu entendo como negro é um pouco mais morena", destacou. Para ele, as pessoas devem de identificar pelas suas características físicas e não pela sua ancestralidade. "Se uma pessoa tiver um cabelo black power e for da tonalidade branca, ela continua sendo branca e não parda", argumentou.
Psicologia
"Se socialmente é dito que ser negro é ser inferior e ser branco é ser superior, logo, pessoas pardas tendem a não querer se associar a imagem negra e são levadas a identificar-se como pessoas brancas, comenta Joyce Avelar, psicóloga clínica e mestre em psicologia clínica e cultura da UnB, sobre por que muitas pessoas pardas não se identificam como negras. "É comum as frases 'você não é negra, é morena', 'você não é tão negra assim', serem normalmente utilizadas para "suavizar" a negritude e aproximar da branquitude", completou.
Joyce Avelar explica a importância do papel que a psicologia desempenha na desconstrução do indivíduo que ofusca os aspectos físicos e culturais da sua raça. Ela evidencia que um dos maiores desafios enquanto psicóloga clínica foi desmistificar o imaginário racista que está entranhado nas subjetividades negras. "É preciso criar novas formas de pensar sobre si mesmo a partir de uma lógica de cuidado, autoamor, direito à liberdade e a uma vida mais digna. Esse processo não se dá só pela via de conhecimento de fatos da história e/ou da opressão social a que pessoas negras são submetidas, esse é um processo doloroso (mas também bonito e poderoso) de (re)descoberta de si e do seu lugar no mundo" afirmou.
O professor Nelson Inocêncio ressalta a importância de as pessoas entenderem e saberem se autoidentificar. "Quando as pessoas tratam preto e negro como sinônimos, porque não são, eu vejo muita gente falando assim: 'Ah, porque eu defendo o povo preto, porque eu defendo a cultura preta'. Cara, você está defendendo menos de 12% da população brasileira, porque quando você fala de preto, você fala de um percentual pequeno da sociedade brasileira. Quando você fala de negros, aí você está falando da maioria da população. É uma questão de entendimento, de postura política. Os pretos são parte de um grande contingente, de um contingente maior, que é a população negra brasileira", disse.
Conscientização
Doutor em linguística e especialista em cultura africana, André Bento desenvolveu a iniciativa Taguatinga Plural, que aborda a educação antirracista e a cultura indígena, tendo como das suas vertentes a questão da autoidentificação dentro das escolas. O projeto estimula professores a fazerem formações, palestras, rodas de conversa para tenham o entendimento de como essa lei pode ser colocada em prática.
"Observar nas escolas estudantes assumindo o que eles são, revelando os cabelos crespos, os cabelos cacheados, os cabelos black, assumindo sua cultura. Antigamente, nós íamos às escolas e as meninas todas de cabelo amarrado, cabelo preso, com vergonha de mostrar os crespos, cacheados, porque eles eram taxados como cabelos feios, cabelos ruins. É muito gratificante perceber essa mudança de pensamento e postura", enfatizou.
Legislação
De acordo com a Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010, a definição de população negra é: o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga.
O estudante de publicidade e morador da Ceilândia Matheus Santos, 27, contou que na infância ele se identificava com a cor parda. "Eu me considerava pardo quando era criança. Hoje, me considero preto", disse. Ele ressaltou que o ensino escolar é fundamental para que as crianças cresçam com essa consciência. "Abordar esse tema racial nas escolas é importante para as pessoas de autoidenticarem negras", ressaltou.
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*Estagiários sobre a supervisão de José Carlos Vieira