
Alguns eventos aleatórios marcam as nossas vidas. Acontecimentos engraçados com amigos em situações improváveis ficam gravados em nossos crânios — mais profundo do que a fórmula de Bhaskara que a professora de matemática tentou fazer com que os alunos memorizassem no fundamental. A nossa memória é afetiva e sensorial. Como quando sentimos o gosto da cor azul porque um cheiro da infância se fez visível por dois segundos. Você, leitor, sentiu o gosto do céu ou do mar?
De tempos em tempos, me lembro de cenas que ficaram encravadas na minha memória por nenhum motivo aparente. Um diálogo profundo ou uma ocorrência cômica, tanto faz. O repertório do ser não tem métricas. Eu mesma sou apenas (ou toda, felizmente) feita de retalhos de todos que um dia já passaram por mim. Uma pessoa remendada por experiências. Tanto as boas quanto as ruins possuem o devido valor. Mas vamos relembrar as boas por hoje.
O sonho de minha amiga Ana é ser santa. "Santa do pau oco, só se for", respondem para ela quando o desejo é revelado. "É que eu sou uma santa mais acessível", ela responde sem se ofender com os comentários. Para mim, Ana já é uma santa. Talvez pelo meu próprio contraste herege, tudo que a minha amiga faz me parece iluminado por motivos divinos. Seja me ouvir chorar a noite inteira ou ajudar uma abelha que entrou em meu apartamento e foi machucada pelos gatos.
Minha amiga viu o pobre inseto lutando pela vida e quis colocá-lo em um lugar com água e açúcar para ele se recuperar. Na falta do açúcar em minha casa, ofereceu uma colher de mel. O que a mesma espécie produziu, Ana agora oferece como uma salvação para a abelha. Uma atitude que nunca passaria pela minha cabeça. Minha amiga é bondosa com todos, seja gente ou bicho, qualquer um é merecedor de cuidado.
O destino não foi tão gentil com a abelha como ela esperava, mas preferi não contar a ela. Perdão, amiga, agora você sabe. Espero que, quando for a sua vez de deixar este mundo, te recebam tão gentilmente quanto você recebeu o inseto e todos que cruzam seu caminho. Ana ainda vai ser santificada. Talvez não do jeito que ela queira, mas, ainda no começo da vida adulta, já segue mais os ensinamentos cristãos do que alguns que apenas vão à igreja.
Outro dia, eu e meu amigo Arthur fomos dar uma pausa no trabalho para fumar. Sentamos no banco e tiramos as coisas do bolso. Meu isqueiro caiu instantaneamente no buraco de lixeira do cinzeiro. Já estressados pelo dia de serviço, nos olhamos incrédulos com a especificidade do acontecimento irritante. "Às vezes a vida é idiota", ele disse e rimos. Às vezes a vida realmente é idiota. Não insuportável ou trágica, mas apenas idiota. Que bom ter alguém para pelo menos rir da idiotice.
E meu amigo Pedro não gosta de receber favores. Antes conhecido de conhecidos, nos aproximamos por acaso do destino e agora caminhamos juntos. Pedro é espiritualista e frequentemente me ajuda com assuntos da alma. Mas não me deixa presenteá-lo com um lanche sem ter uma retribuição envolvida. Muitas vezes, eu o peço para abrir as cartas de tarot para ele, assim, conseguir almoçar. Desculpa, Pedro, nem sempre eu quero tanto assim saber do meu futuro.
Ao exercer o papel de amiga em uma cidade onde não tenho família presente, percebi que não são apenas os relacionamentos amorosos que são nossa base. A parceria da amizade também é um amor em nossas vidas. Digo ao Pedro que nos ajudemos sem esperar nada em troca, além da nossa parceria. Uma mão lava a outra. Talvez um dia seja eu que não tenha dinheiro para almoçar. Talvez eu nem seja tão herege assim quanto eu pensava no início deste texto. Afinal, Ana também me ensinou a me celebrar tanto quanto celebro meus companheiros.
