Saúde

Pandemia reduz o investimento no combate às doenças tropicais negligenciadas

Cenário deve comprometer meta estipulada pela ONU de, até 2030, pôr fim às epidemias dessas enfermidades

Paloma Oliveto
postado em 02/01/2022 06:00
Médico avalia pulmões com suspeita de tuberculose: em 2020, doença foi responsável por 1,5 milhão de mortes -  (crédito: CRIS BOURONCLE)
Médico avalia pulmões com suspeita de tuberculose: em 2020, doença foi responsável por 1,5 milhão de mortes - (crédito: CRIS BOURONCLE)

A campanha vinha sendo planejada há muito tempo. O lançamento, previsto para 30 de janeiro de 2020, seria pomposo. Exatamente oito anos antes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia coordenado a Declaração de Londres sobre Doenças Tropicais Negligenciadas e, então, preparava-se para o primeiro dia mundial dedicado a esse grupo de enfermidades. Mas, então, um inimigo invisível chegou para amedrontar a humanidade e suspender qualquer plano que não fosse o de sobreviver.

Com a pandemia de Sars-CoV-2, pesquisas sobre outras doenças que não a covid-19 ficaram prejudicadas. Não foi diferente em relação a um grupo de 20 enfermidades que, fortemente associadas a países e regiões com baixo nível de desenvolvimento socioeconômico, tradicionalmente já atraem pouca atenção.

Enquanto, em um esforço sem precedentes, o mundo corria atrás de vacinas e terapias para o "novo" coronavírus, diagnósticos, tratamentos e campanhas de controle de vetores foram interrompidos. Uma pausa que, segundo estudos, terá impactos ainda difíceis de calcular e colocará em risco a ambiciosa meta da Organização das Nações Unidas (ONU) de acabar com epidemias de doenças tropicais negligenciadas (DTNs) até 2030.

"O impacto das interrupções dos programas nos ganhos duramente conquistados em termos de redução de infecções, morbidade e mortalidade e, portanto, cronogramas de eliminação, é incerto", destacou um grupo multinacional de cientistas em um artigo publicado na revista Clinical Infectious Diseases. Encabeçada pelo Big Data Institute em Oxford, no Reino Unido, a equipe fez modelagens para algumas DTNs, concluindo que os prejuízos podem ser mitigados, desde que "ações corretivas imediatas — e, em alguns casos, novas — sejam tomadas".

No caso de doenças que dependem das campanhas de administração em massa de medicamentos, como tracoma, mal contagioso transmitido por uma bactéria e principal causa evitável de cegueira no mundo, o grupo prevê retrocessos de até cinco anos no controle das taxas de transmissão. Um outro estudo, do Programa de DTNs da Fundação para Novos Diagnósticos Inovadores, apontou queda no financiamento de pesquisas e na detecção de enfermidades como dengue, tuberculose, Chagas, leishmaniose visceral e hanseníase, entre outros.

"O financiamento das DTNs foi reduzido ainda mais em 2020 e 2021 devido a desafios econômicos ou ao desvio de recursos para o controle da pandemia", diz o texto, publicado na revista Plos. Os autores destacaram que os investimentos já vinham em queda. "O paradigma atual para covid-19 é 'teste, teste, teste', e ferramentas de diagnóstico são amplamente aceitas como a chave para o controle de doenças. A comunidade (de combate às) DTNs tem defendido o desenvolvimento de testes diagnósticos para elas, mas os programas de controle não progrediram nos últimos anos, com poucos testes ou diagnósticos de baixo desempenho", aponta o texto. "Desde o início da crise da covid-19, mais testes de diagnóstico foram desenvolvidos para o Sars-CoV-2 do que para todas as 20 DTNs nos últimos 100 anos."

Efeitos crônicos

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cinco pessoas em todo o mundo corre risco de adquirir alguma DTN, sendo que 1,6 bilhão já convivem com essas enfermidades. Estima-se que os óbitos anuais variem de 500 mil a 1 milhão, especialmente na África, Ásia e América Latina. A infectologista Helena Brígido, professora da Universidade Federal do Pará e membro da comissão de arboviroses da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), lembra que a maioria dessas enfermidades é crônica, levando grande prejuízo à vida dos pacientes.

"A hanseníase, por exemplo, um grave problema de saúde pública no nosso país, pode incapacitar totalmente a pessoa para o trabalho. Há uma debilidade funcional nas mãos e nos pés ao longo do tempo, com impacto na vida social", destaca Brígido. "Na leishmaniose, a pessoa fica com barriga, fígado e baço enormes e, muitas vezes, não é possível regredir a doença." A médica também cita a doença de Chagas, a quarta causa de morte entre as enfermidades infectoparasitárias no Brasil. Uma das sequelas mais graves é a destruição gradual do coração.

Porém, se a pandemia de covid-19 impactou negativamente as pesquisas e campanhas de diagnóstico e tratamento das doenças negligenciadas, especialistas acreditam que os ganhos científicos e tecnológicos decorrentes da busca por vacinas e terapias para a doença causada pelo Sars-CoV-2 poderão acelerar novas descobertas para as DTNs. "A crise atual pode representar oportunidades para fortalecer componentes específicos de estratégias para controlar as DTNs, como aumentar a capacidade de triagem (...). Aplicativos de smartphone e outras tecnologias baseadas em telefone estão sendo usados para rastrear casos e identificar pessoas em risco de infecção por Sars-CoV-2. Sistemas semelhantes podem ser usados para relatar os resultados de testes em regiões endêmicas", destacou o artigo do Programa de DTNs da Fundação para Novos Diagnósticos Inovadores publicado na Plos.

 

 


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Três perguntas para

 (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)
crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press


José David Urbaez, presidente da Sociedade de Infectologia do DF e infectologista do Centro Especializado em Doenças Infecciosas do DF (CEDIN-DF)


A pandemia de covid impactou no desenvolvimento de terapias, no diagnóstico e no tratamento das doenças negligenciadas?
Sem dúvida. E esse impacto é negativo, uma vez que os já escassos recursos direcionados para a pesquisa no campo das doenças negligenciadas foram deslocados para atender demandas da pandemia. O impacto direto da covid-19 se estabeleceu de forma rápida e progressiva, desviando todas as atenções ao se tratar de uma crise sanitária muito aguda, visível. As doenças negligenciadas, cujo próprio nome já aponta para uma subalternização em termos de prioridades, apesar de impactar grandes grupos populacionais, o faz de forma crônica, afetando, com intensidade, pessoas submetidas a condições de extrema pobreza e, portanto, vítimas da iniquidade social nas ações de saúde.

É possível aproveitar tecnologias desenvolvidas para a pandemia de covid-19, como testes rápidos e em massa, no combate às doenças negligenciadas?
Todo produto da pesquisa na área biomédica tem capacidade de ser adaptado aos diferentes modelos de doenças — em especial, nas doenças infecciosas. Os testes rápidos, como aqueles que detectam anticorpos ou antígenos por imunocromatografia por fluxo lateral, já são disponíveis para várias das doenças negligenciadas, como leishmaniose visceral, malária, dengue, doença de Chagas etc. A rapidez do desenvolvimento de testes rápidos para covid-19 teve como base essa tecnologia previamente validada. O que falta são programas robustos, que tenham financiamento, recursos humanos e infraestrutura para executar ações mais potentes contra as doenças negligenciadas.

Um grande esforço mundial resultou no desenvolvimento de vacinas para a covid-19 em tempo recorde. Mesmo que sejam enfermidades diferentes, alguma das plataformas poderia ser adaptada para doenças negligenciadas infecciosas?
É importante destacar que a velocidade do desenvolvimento de vacinas anti-Sars-CoV-2 teve como base a enorme disponibilidade de recursos financeiros, junto com a dedicação de um número de laboratórios e cientistas muito significativo que aproveitaram os resultados já obtidos em pesquisas prévias. Se tivéssemos apenas um percentual desse esforço em andamento para a covid-19 disponível para a resposta às doenças negligenciadas, a maioria delas estaria totalmente controlada e/ou eliminada. A instabilidade na economia mundial com a enorme concentração da riqueza característica faz dessas doenças um dos piores efeitos da desigualdade na população mundial. (PO)

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