aquecimento global

Mudanças climáticas ameaçam sítios históricos e patrimônios da humanidade

Segundo especialistas, há o risco de alguns desses tesouros desaparecerem

Isabella Almeida
postado em 21/05/2023 06:00
 (crédito: AMR ABDALLAH DALSH)
(crédito: AMR ABDALLAH DALSH)

Elevação do nível do mar, aumento da temperatura terrestre e derretimento recorde das geleiras são efeitos das mudanças climáticas enfrentados por moradores de áreas distintas do globo, de pequenos vilarejos a grandes centros urbanos. É também nesses lugares que a história da humanidade corre perigo. Segundo especialistas, sítios arqueológicos e outros patrimônios do tipo estão sendo danificados e podem até mesmo desaparecer em função do atual cenário de urgência ambiental.

Depois da criação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 1988, o mundo começou a prestar mais atenção nos impactos das alterações ambientais em locais considerados tesouros históricos e culturais. O Grupo de Trabalho sobre Patrimônio das Mudanças Climáticas do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), ligado à Organização das Nações Unidas (ONU), descreveu no relatório Futuro de nossos passados como o desequilíbrio ecossistêmico pode levar a uma emergência nos recursos arqueológicos.

O trabalho de 2019 mostra como as consequências das mudanças climáticas afetam patrimônios tradicionais. Entre os problemas descritos, estão o aumento do nível do mar, tempestades, erosões e a elevação dos lençóis freáticos, que podem danificar artefatos e locais arqueológicos subterrâneos. Edifícios e estátuas podem ser desgastados, e existe o perigo de inundação permanente de artes rupestres, indica também o documento.

Segundo Francisco Pugliese, arqueólogo e pesquisador do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos da Universidade de São Paulo (USP), a elevação dos oceanos é uma das alterações mais preocupantes, porque sítios costeiros e insulares "têm enorme potencial de serem submersos ou mesmo destruídos por essa mudança." Conforme aponta o relatório, em Alexandria, no Egito, a única proteção contra esse tipo de dano que ameaça o Castelo de Qaitbay, uma relíquia do século 15, são blocos de concreto que rodeiam o lugar.

O trabalho também alerta para a situação da Reserva Nacional de Valle Caldera, no Novo México (EUA), assolada por chuvas e incêndios florestais recorrentes. Segundo o relatório, o fenômeno coloca em risco a preservação de recursos arqueológicos, como os trabalhos em pedras de obsidiana. Órcades, na Escócia, também enfrenta o problema. Em um cemitério medieval, sacos de areia passaram a ser usados para diminuir os estragos e evitar que precipitações intensas causem mais danos.

Segundo Thiago Ávila, socioambientalista e especialista em emergência climática e desastre ambiental, esse clima de apreensão se estende para a maior parte dos tesouros históricos do planeta. "Eles estão sob efeitos das mudanças que os abalam severamente e fazem com que tenham uma deterioração mais acelerada, passando a sofrer com problemas estruturais", explica. Pugliese lembra que, em muitos casos, as variações no clima aceleram a degradação dos sítios e de peças já em estado vulnerável, dificultando os projetos de preservação.

Erosões

Cientistas britânicos também estão atentos ao problema. Uma pesquisa publicada na Cambridge University Press mostra que as erosões costeiras atravessam o mundo todo. Na cidade de Siraf, no Irã, existe a possibilidade de desaparecimento das bases da antiga muralha. Também há uma situação de alerta em Saint Monans, na Escócia, em Ahu Akahanga, na Ilha de Páscoa, e em uma praia da Carolina do Sul, nos Estados Unidos, indica o trabalho liderado pelo arqueólogo Jørgen Hollesen, do Museu Nacional da Dinamarca, divulgado em novembro de 2022.

Também conforme o estudo, o derretimento acelerado das geleiras do Ártico é preocupante. O degelo do permafrost, camada do subsolo terrestre que está permanentemente congelada, expõe faixas arqueológicas a uma série de fatores degradantes. O fenômeno, por outro lado, permitiu que pesquisadores fizessem descobertas notáveis. Entre elas, as múmias de gelo, conhecidas como Ötzi, e alguns artefatos antigos na Noruega.

Um outro estudo, desenvolvido por Kieran Westley e Julia Nikolaus, da Universidade de Ulster, na Irlanda do Norte, identificou extensa erosão ao longo da costa da Líbia, em um local próximo ao porto de Apollonia, que foi um importante centro de ciência e filosofia no mundo antigo. A cidade de Cirene, fundada pelos gregos no século 7 antes de Cristo, é uma das que correm perigo. O lugar foi um centro comercial e cultural no passado. Suas ruínas, que ficam no alto de uma colina com vista para o Mar Mediterrâneo, agora consideradas Patrimônio Mundial da Unesco, são afetadas pelas oscilações no clima, alerta a dupla de cientistas.

Segundo Pugliese, é um desafio para os profissionais da área compreenderem a melhor forma de atuar nos locais ameaçados para não causar mais danos. A tendência de piora do cenário, levando à ocorrência sucessiva de fenômenos inéditos, deixa o trabalho ainda mais complicado."Condições de preservação que se encontravam estáveis por séculos ou milênios, se tornaram imprevisíveis, o que pode complicar, e até mesmo impossibilitar, a correta interpretação desses locais no futuro", explica o arqueólogo.

Lições do passado

Ávila lembra que, além de contarem o passado, sítios arqueológicos e outras construções similares podem ser o caminho para buscar soluções que resgatem a sintonia entre ser humano e meio ambiente. Isso porque esses lugares remetem a um momento em que os homens viveram em harmonia com a natureza, argumenta. "Eles contam uma história de como era a Terra antes do aquecimento que colocou a natureza como objeto de lucro e tem gerado uma concentração de carbono na atmosfera que é a maior dos últimos 2 milhões de anos."

No caso do Brasil, o ambientalista relata que estudos mostram como a ocupação milenar da Amazônia não apenas manteve a floresta em pé, como foi responsável pela sua formação. "No entanto, esse tipo de conhecimento se desfez ao longo do tempo. Não compreender o processo de criação da mata é uma perda muito grande, pois o entendimento sobre a natureza poderia ajudar nas questões ambientais enfrentadas hoje."

Para Ávila, é necessária e urgente a adoção de medidas para minimizar os impactos de alterações climáticas nas provas da história humana. "Esses efeitos vão acontecendo em intensidade cada vez maior, e é melhor que esses lugares se adaptem. Mudanças estruturais, medidas de compensação e outras precauções para que esse patrimônio seja preservado são alguns dos caminhos", indica.

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  • Lugares históricos em Órcades na Escócia estão ameaçados por erosões causadas pelas mudanças climáticas
    Lugares históricos em Órcades na Escócia estão ameaçados por erosões causadas pelas mudanças climáticas Foto: Ryan Denny/Unsplash
  • Erosão costeiria danifica estrutura do Porto de Apollonia, na Líbia
    Erosão costeiria danifica estrutura do Porto de Apollonia, na Líbia Foto: Saad Buyadem, CC-BY 4.0 (https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/)

Preocupações no Brasil

 (crédito: GuilhermeJofili/Flickr.)
crédito: GuilhermeJofili/Flickr.

No Brasil, alguns sítios arqueológicos se camuflam em meio às matas, o que ajuda a preservá-los, como o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, e o Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco. Apesar de estarem em áreas preservadas, os patrimônios nacionais não estão a salvo dos problemas climáticos.

O pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) Francisco Pugliese menciona que uma das principais causas das mudanças climáticas no país é o intenso desmatamento. Tesouros que antes ficavam protegidos pelas matas e pelas comunidades tradicionais vivem, agora, intenso estado de degradação "pelas enormes monoculturas e pelas criações de gado que os substituíram", completa.

Segundo ele, a divulgação da arqueologia da Serra da Capivara, com a criação do Parque Nacional, em 1975, foi essencial para que o mundo voltasse os olhos para a relevância do passado dos povos indígenas não só do Nordeste brasileiro, mas por todas as terras baixas da América do Sul. "Melhorou imensamente a preservação e a valorização dos sítios", acredita.

Indígenas

Amanda Villa, doutoranda em antropologia social pela USP, reitera que, no Brasil, o patrimônio histórico pré-colonial é o dos povos indígenas. Há ilhas fluviais nas margens de grandes rios que contam com sepultamentos milenares, resquícios de sementes que indicam domesticação e migração, entre outros patrimônios, relata a especialista. "São informações que poderiam nos ajudar a compreender a história da América antes de sua violenta ocupação colonial e que, ano a ano, vêm sendo perdidas."

A cientista considera a preservação de locais culturais e históricos indispensável para que se conte a história de um ponto de vista diferente. "Em muitos casos, para que se saiba a versão dos fatos que não seja descrita por colonizadores", enfatiza. "Esses lugares também revelam informações sobre processos migratórios, tecnologias e dieta, evidenciam e legitimam a ocupação ancestral dos povos indígenas em locais que passam por litígio territorial."

Pugliese crê que o que é apagado nesses lugares por conta do desequilíbrio ambiental é de valor imensurável. "Perder os sítios arqueológicos significa perder uma infinidade de conhecimentos que esses povos lutam há mais 500 anos para preservar e que poderiam ser a contribuição-chave para a reversão dessa situação extrema de degradação ambiental que vivemos." 

Recordes sucessivos

A Terra segue em um ritmo de aquecimento que tende a não retroceder. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), há 98% de chance de operíodo entre 2023 e 2027 ser o mais quente já registrado. Assim como também é grande a possibilidade — risco de 66% — de ultrapassarmos o limite de aquecimento de 1,5ºC acordado, em 2015, em Paris. O relatório da agência, divulgado na semana passada, indica, ainda, que as temperaturas recordes se darão principalmente pelo efeito estufa e pelos impactos do fenômeno meteorológico El Niño.

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