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Ultraprocessados: riscos também para os filhos

Em testes, filhotes de ratas que, na gravidez, ingeriram emulsificantes presentes nesses alimentos apresentaram deficiências metabólicas e cognitivas. Para especialistas, resultado reforça alertas sobre o consumo desses produtos por humanos

Estudo avaliou o consumo de metilcelulose e polissorbato-80, usados para preservar a textura dos industrializados -  (crédito: Freepik)
Estudo avaliou o consumo de metilcelulose e polissorbato-80, usados para preservar a textura dos industrializados - (crédito: Freepik)
Paloma Oliveto
postado em 03/09/2023 06:01

Alimentos ultraprocessados são conhecidos pelas associações com doenças metabólicas e cardiovasculares, e alguns deles, como os embutidos, estão na lista de cancerígenos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Agora, um artigo espanhol mostra que dois emulsificantes — componentes comuns desses produtos — representam risco à prole quando ingeridos na gestação. Embora feito em ratos e, portanto, ainda sem implicação para a saúde humana, especialistas em nutrição destacam que o estudo traz mais uma evidência de que as substâncias industrializadas podem ser maléficas, exigindo novas pesquisas para garantir o consumo seguro.

Emulsificantes são uma classe de produtos que ajudam a preservar a textura de alimentos ultraprocessados, como alguns sorvetes, pães, misturas para bolos, sopas e molhos prontos para salada. Pesquisas anteriores associaram o consumo dessas substâncias ao aumento do risco de inflamação intestinal, obesidade e outras condições de saúde.

Como hábitos alimentares de gestantes e lactantes também foram relacionados a problemas de longo prazo nos descendentes, uma equipe do Instituto de Investigações Biomédicas Augusto Pi i Sunyer (Idibaps), em Barcelona, decidiu examinar se o consumo de dois emulsificantes muito comuns — metilcelulose, também prescrito como laxante, e polissorbato-80, composto sintético usado em alimentos, maquiagens e medicamentos — impactaria a saúde da prole.

Por serem substâncias potencialmente inseguras, os cientistas optaram por fazer os testes em animais em vez de humanos. Ratas de laboratório receberam água com os dois emulsionantes desde antes da gestação até a lactação. Elas ingeriram o equivalente à concentração máxima de cada produto permitida em alimentos para humanos pela Organização para Alimentação e Agricultura (FAO) e pela OMS. Para efeito de comparação, outras roedoras eram hidratadas com líquidos sem as substâncias.

Os pesquisadores descobriram que os descendentes dos animais que consumiram os dois emulsificantes apresentavam um risco maior de alguns problemas de saúde, incluindo deficiências metabólicas, cognitivas e psicológicas leves. Os efeitos foram mais fortes na prole do sexo masculino, embora tenham sido observados em ambos. Uma combinação de testes de expressão genética e exames laboratoriais sugeriu que o consumo materno da metilcelulose e do polissorbato-80 prejudicou o desenvolvimento dos circuitos neurais no hipotálamo dos filhos. Essa região do cérebro desempenha um papel central na regulação do metabolismo.

"Nosso estudo sugere que o consumo materno de emulsificantes pode afetar a saúde dos filhos, promovendo distúrbios metabólicos leves, estados semelhantes aos da ansiedade e de deficiências cognitivas", descreve Marc Claret, um dos autores. "Serão necessárias pesquisas adicionais para esclarecer melhor os efeitos sobre os descendentes. Ainda assim, com base nas descobertas, apelamos para uma maior sensibilização para os riscos potenciais do consumo de alimentos ultraprocessados pelas mães", diz. No artigo, publicado na revista Plos Biology, eles expressam especial preocupação com produtos considerados saudáveis, como certos industrializados vegetarianos e veganos, que contêm emulsionantes potencialmente prejudiciais.

Duane Mellor, nutricionista e professor da Universidade de Aston, no Reino Unido, destaca que os efeitos observados nos ratos podem não se repetir em humanos. "Ainda não é possível afirmar que as descobertas em ratos se aplicariam definitivamente aos seres humanos, uma vez que existem diferenças na anatomia intestinal e outros fatores complexos, como a genética, o microbioma intestinal, o sistema imunológico e fatores ambientais. Tudo isso influencia o desenvolvimento no útero e durante a infância", pondera Mellor, que não participou do estudo.

Além disso, o nutricionista ressalta que existem mais de 60 emulsionantes na indústria, o que dificulta afirmar, categoricamente, que essa classe de substâncias é prejudicial. "Algumas são naturais e até podem ter benefícios para a saúde. A lecitina, por exemplo, encontrada nos ovos e na soja, contém colina, que tem sido associada a benefícios para a saúde e, em mulheres que não têm um gene chamado Snip, pode ser essencial durante a gravidez", argumenta. "Outros emulsionantes são sintéticos, podendo alterar o microbioma intestinal e impactar os marcadores de saúde, como visto nesse estudo com ratos", diz.

Vigilância

Para Ester López-García, professora de epidemiología do Departamento de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Universidade Autônoma de Madri, embora não se deva extrapolar os resultados de estudos em animais para humanos, indicativos de que podem ser prejudiciais exigem cuidados das agências reguladoras de alimentos. "Quando são detectados potenciais efeitos nocivos de algumas substâncias, os órgãos públicos que zelam pela saúde das pessoas têm a obrigação de examinar as provas científicas e decidir se a autorização de introdução no mercado dessa substância deve ser revogada", acredita a especialista, que não está envolvida no estudo espanhol.

Segundo López-García, as evidências de estudos epidemiológicos são suficientes para desaconselhar o consumo de produtos ultraprocessados. "As recomendações dietéticas para a população em geral, que enfatizam o consumo de alimentos dentro dos padrões alimentares tradicionais e recomendam minimizar o consumo de produtos processados, ricos em sal, açúcar, gorduras de baixa qualidade e aditivos alimentares, também se aplicam a mulheres grávidas", ressalta.

Especialista em gastroenterologia e pesquisador do King's College London, no Reino Unido, Aaron Bancil considera os resultados do estudo preocupantes. "O artigo se soma ao conjunto de evidências que sugerem que o consumo de emulsificantes alimentares pode ser prejudicial em doses equivalentes às consumidas por alguns humanos", afirma. "É imperativo que cada emulsionante seja investigado individualmente, pois é provável que tenham efeitos diferentes, podendo alguns deles impactar negativamente a saúde. O que é certo é que necessitamos urgentemente de estudos de alta qualidade em humanos para validar esses resultados e, posteriormente, direcionar orientações alimentares e políticas de saúde se necessário."

 


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