SAÚDE MENTAL

Shutdown e meltdown: entenda as crises causadas por sobrecarga no autismo

Ambientes barulhentos, dias movimentados ou quebra de rotina podem gerar respostas de "desligamento" ou "explosão" em pessoas autistas

Uma das principais características do Transtorno do Espectro Autista (TEA) é a dificuldade em processar muitos estímulos, por causa da sensibilidade sensorial. Sejam por ruídos, luzes ou cheiros, autistas podem se sentir sobrecarregados e, consequentemente, entrarem em uma espécie de colapso emocional e psicológico. Ambientes barulhentos, dias movimentados ou quebra de rotina podem gerar respostas de "desligamento" ou "explosão" em pessoas diagnosticadas com TEA. Essas crises são nomeadas como shutdown e meltdown.

"É como em um jogo que você joga muito, o console fica sobrecarregado e pode desligar. Se eu não tenho tudo previamente explicado, eu passo mal, desligo totalmente", descreve a estudante Ania Martins Fontes, que recebeu o diagnóstico de autismo aos 19 anos de idade. Em um shutdown, as pessoas autistas podem apresentar dificuldades na comunicação e se distanciar do ambiente.

Nesses momentos, o recurso terapêutico utilizado por Ania é o Boris, um cão de assistência. "Ele é treinado para fazer terapias de pressão que acalmam o sistema nervoso central, além de trazer medicação, impedir que eu me machuque e pode até chamar ajuda", relata. "Lembro de antes do Boris chegar, eu amanhecer grudada na porta do quarto dos meus pais chorando por ter crise, não saber me expressar, e ao mesmo tempo não querer atrapalhar o sono deles", acrescenta a estudante.

"Sobrecarga discreta"

Diagnosticada aos 27 anos, a psicóloga Kmylla Borges afirma que durante um shutddown, costuma ficar com o corpo paralisado, com o "olhar vazio" e sentindo muito cansaço. Nessas crises, as emoções são internalizantes — fato que contribui para que o sofrimento passe despercebido ou até mesmo desacreditado pelos outros. "Nesses momentos, geralmente eu preciso dormir, sinto um cansaço extremo e muito sono. Ou apenas ficar em um ambiente silencioso, sem barulho e pouca luz. As pessoas podem auxiliar dando previsibilidade, e observando alguns sinais que podem servir alerta, como ansiedade ou desconforto", pontua.

Arquivo pessoal -
Arquivo pessoal -
Arquivo pessoal -
Arquivo pessoal -

O psicólogo Lucas Pontes, também diagnosticado autista, lembra que cada pessoa vivencia a crise por meio de sintomas diversos. No entanto, a sensação de fraqueza é comumente relatada pelos indivíduos com TEA. "Passo a ter dificuldade em me movimentar e tudo fica mais intenso, de forma negativa. Durante e pouco após a crise, eu, geralmente, não consigo me comunicar através da fala e levo um bom tempo para me recuperar", diz.

Lucas foi diagnosticado em 2018, aos 20 anos. Segundo ele, após o diagnóstico as crises foram ficando mais raras. "Entendendo melhor o meu funcionamento, respeito meus limites. Apesar dos sinais claros na minha infância, das comuns implicações do autismo na minha adolescência e da busca constante por uma resposta para as minhas dificuldades e peculiaridades, os profissionais costumavam descartar o diagnóstico com base em preconceitos e mitos, como pelo fato de eu falar bem, ser 'inteligente', e coisas do tipo. Após encontrar profissionais da neurologia e psiquiatria, atualizados e especializados na área, e realizar o processo de avaliação, eu recebi o diagnóstico de depressão, ansiedade e, posteriormente, a maior resposta, para tudo que eu me questionei durante toda vida, o autismo", lembra Lucas.

"Crise explosiva"

Diferentemente do shutdown, o meltdown é caracterizado pelas emoções intensas e externalizantes. Para Ania Martins, meltdown é como uma pressão forte na cabeça. "Ocorre com quebra de rotina ou sobrecarga sensorial, tenho muita rigidez cognitiva e se as coisas são diferentes do que eu espero, meu cérebro não aguenta e explode em crise", descreve a estudante de neuropsicologia.

Durante essas crises, os autistas podem chorar, gritar, além de ter movimentos bruscos e involuntários. "Em mim, essas deixaram de ser frequentes a partir da minha infância. Na época, questões envolvendo minha rigidez cognitiva, imprevisibilidade, dificuldades em expressar o que eu estava sentindo e impactos emocionais, eram os principais motivos. Me ajudava estar perto de alguém em quem eu confiava, assim como me afastar das outras pessoas e estímulos. Em alguns casos, era necessário que alguém me segurasse para que eu não me machucasse", destaca Lucas.

Como ajudar autistas em crise?

Os psicólogos Lucas Pontes e Kmylla Borges elencam algumas dicas de como ajudar autistas em momentos de crise. Demonstrar apoio, ser compreensivo e dar espaço são algumas das principais maneiras de agir durante um shutdown ou meltdown. Veja outras recomendações:

  • Leve a pessoa autista para um lugar tranquilo;
  • Entenda que algumas pessoas preferem ficar sozinhas e outras gostam da companhia e até do contato físico;
  • Observe sinais que podem servir de alerta, como ansiedade ou desconforto;
  • Verifique se há a possibilidade de a pessoa se machucar e retire objetos de perto para minimizar os riscos de acidentes;
  • Pergunte para a pessoa como gostaria de ser acolhida e o que pode ser feito para ajudá-a;
  • Fique atento a quantidade de perguntas, pois em situações estressantes, a pessoa pode não estar em condições de responder com clareza e isso pode deixá-la mais ansiosa;
  • No lugar das muitas perguntas, dê previsibilidade e orientações claras para a pessoa poder se regular emocionalmente.

O que é autismo?

Segundo o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o autismo é um transtorno de neurodesenvolvimento e possui três níveis, que vão sendo classificados de acordo com a maior ou menor necessidade de suporte. As causas do TEA ainda não são totalmente conhecidas, mas a explicação mais aceita é a interação de fatores genéticos e ambientais.

Segundo dados do Centro de Controle de Prevenção e Doenças (CDC, na sigla em inglês), uma em cada 36 crianças de 8 anos são autistas nos Estados Unidos. No Brasil, ainda não há dados consolidados sobre o transtorno, mas se as proporções deste levantamento norte-americano forem aplicadas à população brasileira, há cerca de 6 milhões de autistas no país.

O transtorno do espectro autista (TEA) não é uma doença — e também não tem cura. Portanto, o conceito da neurodiversidade, criado pela socióloga australiana Judy Singer, e que se refere às variações naturais do cérebro de cada indivíduo, é defendido pela comunidade autista, pois traz uma perspectiva mais inclusiva sobre o transtorno. Nesse sentido, os autistas são chamados de neurodivergentes e os não-autistas de neurotípicos (denominações utilizadas para não propagar a noção de “normalidade” e “anormalidade”, pois são excludentes).