
Ingrediente base do chocolate, o cacau tem propriedades anti-inflamatórias que podem prevenir o envelhecimento celular e, consequentemente, doenças crônicas, como as cardiovasculares. A conclusão é de um estudo do Mass General Brigham, em Boston, nos Estados Unidos, publicado na revista Age and Ageing. Os autores usaram dados de 598 participantes do Cosmos, um ensaio clínico com pessoas acima de 60 anos que, de 2014 a 2020, receberam suplementos diários com extrato da fruta.
Um estudo anterior com 21.442 pessoas inscritas no Cosmos constatou que a suplementação com cacau esteve associada a uma redução de 27% na mortalidade por doenças cardiovasculares. Na investigação atual, o interesse dos pesquisadores foi analisar, em amostras de sangue dos participantes, a presença de substâncias inflamatórias.
Entre outras coisas, os pesquisadores descobriram que o marcador hsCRP — que pode sinalizar aumento do risco de doenças cardiovasculares — diminuiu nos participantes que tomaram o suplemento de extrato de cacau. Isso sugere que as propriedades anti-inflamatórias da planta podem ajudar a explicar seus efeitos protetores do coração.
"Nosso interesse no extrato de cacau e no inflammaging começou com base na redução da mortalidade por doenças cardiovasculares", disse, em nota, o autor correspondente Howard Sesso, da Divisão de Medicina Preventiva e do Brigham and Women's Hospital. Ele se refere a um conceito recente, que associa inflamação sistêmica a envelhecimento (aging, em inglês).
Baixo grau
Com o passar do tempo, o corpo passa a conviver com níveis persistentemente elevados de inflamação de baixa intensidade. Esse estado — o inflammaging — aumenta a vulnerabilidade a doenças crônicas e condições como infartos, derrames e declínio cognitivo. "Mesmo sem uma doença aparente, o organismo mantém a inflamação de baixo grau. É isso que vai desgastando as células e acelerando problemas como diabetes, Alzheimer e doenças cardiovasculares", explica Esthela Oliveira, nutróloga e médica do esporte, integrante do Hospital Albert Einstein e da Side Clinic.
Entre as opções preventivas estudadas para combater o inflammaging, a dieta tem se mostrado um dos caminhos mais promissores. "A alimentação entra como uma ferramenta poderosa aqui, porque muitos nutrientes têm ação anti-inflamatória e antioxidante, como o cacau. Os flavonoides da planta ajudam a frear esse processo", destaca a nutróloga. Para obter os benefícios, contudo, é preciso escolher bem a forma do alimento. "O ideal é buscar as opções com cacau 100% puro, ou 70%. Nessa forma, o chocolate é extremamente amargo, mas é uma questão de ajuste de paladar", diz.
Amostras
No estudo norte-americano, os pesquisadores queriam checar se a suplementação de extrato de cacau por vários anos, em comparação com um placebo, poderia modular o inflammaging. Para isso, coletaram e analisaram amostras de sangue de quase 600 participantes do Cosmos para medir a presença de substâncias associadas à inflamação: três proteínas pró-inflamatórias (hsCRP, IL-6 e TNF-), uma proteína anti-inflamatória (IL-10) e uma proteína imunomediadora (IFN-).
Os dados, coletados por 24 meses, mostraram que o grupo que recebeu o extrato de cacau teve uma redução de 8,4% ao ano nos níveis de hsCRP em relação ao placebo. O efeito foi mais acentuado em pessoas que já tinham quantidades elevadas desse biomarcador no início da pesquisa, indicando que o suplemento pode ser especialmente eficaz em indivíduos com inflamação basal mais alta.
Outro resultado relevante foi o aumento do IFN- nos participantes que consumiram o extrato de cacau. Esse biomarcador desempenha papel complexo na resposta imunológica: em excesso pode estar associado a doenças inflamatórias, mas em níveis moderados contribui para a defesa do organismo. Os demais indicadores analisados não apresentaram diferenças significativas entre os grupos.
Os autores observam que os resultados reforçam o potencial de estratégias nutricionais para prevenir doenças ligadas ao envelhecimento. No artigo, eles argumentam que, em vez de se concentrar apenas em tratamentos farmacológicos, investir em alimentos e suplementos capazes de modular processos inflamatórios pode representar um caminho complementar para prolongar a vida saudável. "Embora o extrato de cacau não substitua um estilo de vida saudável, esses resultados são encorajadores e destacam seu papel potencial na modulação da inflamação à medida que envelhecemos", disse o autor sênior Yabin Dong, cardiologista/geneticista populacional na Universidade Augusta, nos Estados Unidos.
Duas perguntas para
Sandro Ferraz, médico nutrólogo especializado em longevidade e CEO do Instituto Evollution
Qual a relevância da descoberta descrita no estudo?
Os compostos bioativos presentes no cacau, principalmente os flavonoides, têm propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias comprovadas. Esses mecanismos não apenas podem reduzir os níveis de hsCRP, mas também contribuir para a melhora da função endotelial, redução da oxidação do LDL e inibição da formação de placas ateroscleróticas, aspectos fundamentais na prevenção das doenças cardiovasculares. No entanto, a aplicação clínica dessa intervenção deverá ser considerada dentro do contexto de uma abordagem global de modificação do risco cardiovascular, ressalvando a necessidade de investigações que corroborem a tradução desses achados para reduções nos eventos clínicos.
Quando o uso de suplementos e nutracêuticos pode ser indicado e quando pode gerar expectativas excessivas?
A decisão de incluir nutracêuticos no manejo clínico deve ser baseada em evidências científicas consistentes, avaliação individualizada do perfil do paciente e sempre acompanhada do diálogo com o paciente sobre o papel de cada intervenção na abordagem global dos fatores de risco cardiovascular. O uso sem avaliação adequada pode levar a doses não comprovadas ou a interações medicamentosas, sobretudo entre pacientes que já estão em terapias farmacológicas. O mercado de nutracêuticos, em alguns casos, explora exageradamente os benefícios potenciais, criando expectativas irreais por parte dos pacientes. Assim, é fundamental que o profissional de saúde transmita informações baseadas em evidências, esclarecendo que esses produtos devem ser vistos como complementares e não como soluções milagrosas. (PO)
Alimentos funcionais
Além do cacau, diversos alimentos funcionais têm demonstrado potencial para reduzir marcadores inflamatórios. O médico nutrólogo Sandro Ferraz, especializado em emagrecimento e longevidade, exemplifica e explica os mecanismos de cada um deles.
Peixes ricos em ômega-3: os ácidos graxos de cadeia longa modulam a síntese de eicosanoides (moléculas lipídicas) pró-inflamatórios e promovem a produção de resolvinas, responsáveis pela resolução de processos inflamatórios. Estudos demonstram que a ingestão regular está associada a uma redução de citocinas inflamatórias e de marcadores como a hsCRP.
Azeite de oliva: contém polifenóis e compostos antioxidantes que agem modulando a inflamação. A ingestão do óleo tem sido associada à diminuição da inflamação sistêmica e à melhora da função endotelial, contribuindo para a redução dos níveis de marcadores inflamatórios e proteção cardiovascular.
Frutas vermelhas: frutas como mirtilo, morango (foto) e amora têm elevada concentração de flavonoides e outros polifenóis com propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. A ação desses compostos favorece a neutralização de radicais livres e a inibição de vias inflamatórias.
Nozes e sementes: fontes de gorduras insaturadas, fibras e antioxidantes, nozes, amêndoas e castanhas têm sido associadas a uma redução dos marcadores inflamatórios. Além disso, a presença de vitamina E e de outros nutrientes bioativos ajuda na proteção contra o estresse oxidativo e na manutenção de um ambiente metabólico menos pró-inflamatório.
Chá verde: os polifenóis da bebida, principalmente as catequinas, têm um forte efeito antioxidante e anti-inflamatório, inibindo a produção de citocinas inflamatórias e contribuindo para a redução do estresse oxidativo. Estudos sugerem que o consumo regular deste chá pode contribuir para a diminuição de biomarcadores inflamatórios em diversos contextos.