Guardião do organismo, o sistema imunológico pode, contudo, se tornar um poderoso inimigo quando fora da ordem. Ao não reconhecer os próprios tecidos e se mobilizarem para atacá-los, algumas células acabam liberando substâncias que provocam as chamadas doenças autoimunes, como esclerose múltipla, lúpus, asma e diabetes tipo 1. A descoberta do mecanismo que permite regular os "soldados" imunitários e impedir o autoataque, os norte-americanos Mary E. Brunkow e Fred Ramsdell e o japonês Shimon Sakaguchi foram laureados, ontem, como Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2025.
O júri entendeu que a imunologista Brunkow, o biólogo Ramsdell e o médico Sakaguchi não só aprofundaram a compreensão teórica da imunologia, mas cada um em seu laboratório, abriu caminhos para aplicações clínicas que podem beneficiar milhões de pessoas no mundo. "A esperança é poder tratar ou curar doenças autoimunes, fornecer tratamentos mais eficazes contra o câncer e prevenir complicações graves após transplantes de células-tronco", disse o comitê, em nota.
Professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro da Academia Brasileira de Ciências, Ana Maria Caetano de Faria explica que o trio foi laureado por descobrir o principal mecanismo da tolerância imunológica central e periférica. "Tolerância é o nome que se dá aos mecanismos que garantem o controle da reatividade imunológica contra os componentes do organismo e aqueles externos, que são inofensivos e não causam dano ou infecção, as proteínas da dieta e as bactérias da microbiota", esclarece.
Os pesquisadores, diz a professora da UFMG, mostraram que o principal mecanismo capaz de controlar a reatividade aos componentes internos e também controlar as respostas contra agentes externos inofensivos é a ação dos chamados linfócitos T reguladores CD4 CD25 Foxp3 . "Essas células são fundamentais na operação do sistema imune e defeitos na sua produção estão relacionados ao desenvolvimento de doenças autoimunes", explica. "Além disso, deficiências na função dessas células nas mucosas podem estar envolvidas em doenças inflamatórias crônicas do intestino, como a de Crohn, ou nas alergias."
Audacioso
Os estudos que culminaram com as descobertas dos laureados começaram há três décadas. Em 1995, em um cenário científico dominado pela crença de que a tolerância imunológica dependia exclusivamente da eliminação de células potencialmente nocivas no timo — processo conhecido como tolerância central —, Shimon Sakaguchi fez uma descoberta considerada audaciosa. Ele demonstrou que, além desse mecanismo central, há também regulação importante fora do órgão na periferia do sistema imunitário.
Com isso, o médico japonês identificou uma nova classe de células com capacidade de controlar a resposta imunológica e prevenir doenças autoimunes. Ontem, ao comentar a premiação, Sakaguchi afirmou que o reconhecimento foi inesperado. "Foi uma surpresa agradável, e estou muito satisfeito que nossa contribuição tenha sido reconhecida", disse. Ele também destacou a importância do prêmio para impulsionar novas aplicações práticas de sua pesquisa.
Em seus respectivos laboratórios, nos Estados Unidos, Mary E. Brunkow e Fred Ramsdell estudaram uma linhagem de camundongos conhecida como "scurfy", especialmente suscetível a doenças autoimunes. Eles descobriram que esses animais tinham uma mutação no gene Foxp3. Pesquisas posteriores mostraram que variantes no equivalente humano da proteína estavam associadas a uma doença autoimune chamada Ipex (immune dysregulation, polyendocrinopathy, enteropathy, X-linked).
Associação
Dois anos depois, Sakaguchi conseguiu conectar suas investigações iniciais ao trabalho de Brunkow e Ramsdell, demonstrando que o Foxp3 regula o desenvolvimento das células T reguladoras que ele havia identificado. Assim, ficou evidente a associação de duas descobertas aparentemente distintas
Entrevistada pelo site da Assembleia Nobel no Instituto Karolinska, na Suécia, Mary E. Brunkow destacou o caráter coletivo da ciência. "Com certeza, são necessárias várias mentes diferentes trabalhando juntas nisso." Fred Ramsdell, que se apaixonou pela imunologia ainda na graduação, afirmou que a pesquisa sobre o Foxp3 marcou o "início de um novo capítulo no entendimento de como o sistema imunológico se regula".
Segundo Ana Maria Caetano de Faria, da Academia Brasileira de Ciências, as contribuições dos laureados também se aplicam à pesquisa do câncer. "O próprio Simon Sakaguchi já mostrou que estas células T reguladoras estão presentes em outros contextos patológicos como, por exemplo, nos tumores. No ambiente tumoral, a inibição dessas células é um dos mecanismos de ação dos anticorpos anti-CTLA-4, por exemplo, como terapia anti-cancerígena."
Nos transplantes de órgãos, o estudo das células T reguladoras pode evitar reações inflamatórias ou de rejeição. "Alguns grupos de pesquisa no Brasil, como o de Verônica Coelho do Incor-USP trabalha exatamente tentando isolar e melhorar a ação de células T reguladoras em pacientes transplantados na tentativa de evitar a reação inflamatória de rejeição de transplantes de rim, por exemplo", destaca a professora da UFMG.
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