Prêmio Nobel

Descobridores do efeito túnel quântico conquistam o Nobel de Física

Trio de pesquisadores descobriu, na década de 1980, que um comportamento típico de partículas subatômicas também se aplica aos sistemas macroscópicos. O trabalho é a base de toda tecnologia digital

O britânico John Clarke, o francês Michel H. Devoret e o norte-americano John M. Martinis conquistaram, nesta terça-feira (7), o Prêmio Nobel de Física. O reconhecimento veio pelas descobertas sobre o efeito túnel quântico e a quantização de energia em circuitos elétricos, observadas em experimentos da década de 1980. Estudos do grupo impulsionaram avanços que modernizaram os computadores e outros dispositivos atuais.

A mecânica quântica analisa como a matéria e a energia se comportam em escalas minúsculas, como as dos átomos. Um dos fenômenos mais intrigantes desse campo é o chamado efeito túnel, no qual uma partícula atravessa uma barreira que, segundo as leis da física tradicional, deveria ser intransponível — como se uma bola pudesse passar por uma parede em vez de bater e voltar.

Há cerca de 40 anos, o trio demonstrou que esse comportamento não se limita às partículas subatômicas, podendo ocorrer também em sistemas macroscópicos, perceptíveis a olho nu. Para isso, recorreram a materiais supercondutores — capazes de conduzir eletricidade sem resistência quando resfriados a temperaturas extremamente baixas.

Ao projetar circuitos supercondutores altamente sensíveis, o grupo observou dois fenômenos fundamentais. O primeiro foi o efeito túnel quântico macroscópico, no qual a corrente elétrica atravessou uma barreira em vez de ser bloqueada. Depois, verificaram que, nesse tipo de sistema, os níveis de energia só podiam assumir valores específicos, e não variar de forma contínua como se imaginava. Segundo a Academia Real das Ciências da Suécia, a descoberta revelou que "as propriedades peculiares do mundo quântico podem se manifestar em algo grande o suficiente para caber na palma da mão".

Grandes aplicações

Segundo Rafael Chaves, líder de pesquisa do Instituto Internacional de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), com apoio do Instituto Serrapilheira, além do valor fundamental da descoberta, esses circuitos supercondutores tornaram-se, anos depois, a base de uma revolução tecnológica vigente. "Na computação quântica, não somente o hardware — peças físicas e eletrônicas de um dispositivo —, segue os princípios da física quântica, mas também o software — conjunto de instruções, programas e dados que orientam tarefas. Essa área se consolidou com o desenvolvimento dos primeiros algoritmos capazes de resolver desafios concretos", detalhou.

No Brasil, afirma Chaves, destacam-se projetos de vanguarda da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, que trabalham na criação dos primeiros chips supercondutores voltados à tecnologia quântica. "Recentemente, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) aprovou a criação de um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Inteligência Artificial e Computação Quântica, reunindo pesquisadores e instituições de diversas regiões", acrescenta.

Criptografia

O Comitê do Nobel destacou que a pesquisa dos três premiados abriu caminho para o avanço das tecnologias contemporâneas, como a criptografia e os sensores de alta precisão. Atualmente, circuitos derivados desses experimentos sustentam os qubits supercondutores — unidades fundamentais de informação de muitos computadores quânticos —, empregados por empresas como o Google.

"É maravilhoso celebrar como a mecânica quântica, mesmo após mais de um século, ainda reserva tantas surpresas", afirmou Olle Eriksson, presidente do Comitê do Nobel de Física. "Também é extremamente útil, já que ela é a base de toda a tecnologia digital", acrescentou.

"Para dizer suavemente, foi a surpresa da minha vida", declarou John Clarke, ao saber da notícia. Ele detalhou que, na época dos experimentos, o grupo estava tão concentrado nos testes que não imaginava as aplicações práticas de seus resultados. "Nunca nos passou pela cabeça que essa descoberta teria um impacto tão significativo", disse. Ele lembrou que até os telefones dependem de tecnologias baseadas em princípios quânticos. "Uma das razões fundamentais pelas quais o celular funciona é graças a todo esse trabalho", afirmou.

Esforço

Em entrevista à Fundação Nobel, Clarke destacou que a descoberta foi um esforço conjunto. "Não podia imaginar aceitar o prêmio sem os dois", afirmou, referindo-se a Devoret e Martinis. "O fato de que Michel Devoret tenha se instalado nos Estados Unidos é um exemplo da fuga de cérebros", declarou à agência France-Presse (AFP) Eleanor Crane, pesquisadora de física quântica do King's College de Londres, no Reino Unido. No entanto, ela acredita que essa tendência "está sendo revertida" com a nova administração do presidente Donald Trump.

Para Everton Arrighi, físico e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o reconhecimento da pesquisa é simbólico. "Devoret foi responsável por criar um dos primeiros qubits, enquanto Martinis contribuiu de forma decisiva para o desenvolvimento dos supercondutores", explicou. "O papel de Martinis à frente do Google também foi marcante, pois ofereceu o primeiro indício de que um computador quântico poderia superar o clássico em determinadas tarefas."

A premiação continua nesta quarta-feira (8), com o anúncio do Nobel de Química, seguido pelo de Literatura na quinta-feira (9) e o da Paz na sexta (10). O de Economia encerrará a temporada na próxima segunda-feira, 13 de outubro.

 

Quem são os pesquisadores premiados

 John Clarke 

O britânico, de 83 anos, é professor na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, e uma das principais autoridades em supercondutores e magnetômetros de altíssima sensibilidade. Nos anos 1980, Clarke foi um dos primeiros a demonstrar experimentalmente o efeito túnel quântico macroscópico, provando que a física quântica também se aplica a sistemas grandes o suficiente para serem vistos a olho nu.

Michel H. Devoret 

Nascido na França, é professor da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Devoret, 72 anos, é mundialmente conhecido por combinar engenharia elétrica e física quântica. Seu trabalho se concentra em construir circuitos supercondutores capazes de exibir e controlar efeitos quânticos.

John M. Martinis

Nascido em 1958, nos Estados Unidos, também tem ligações com a Universidade da Califórnia e ficou famoso por liderar o projeto de computação quântica da Google, que em 2019 anunciou ter alcançado a chamada “supremacia quântica” — quando um computador quântico executa uma tarefa impossível para as máquinas clássicas.

 

Três perguntas para

 Nelson Studart, coordenador acadêmico da Ilum Escola de Ciência e doutor em Física pela Universidade de São Paulo (USP)

Como os experimentos dos laureados contribuíram para o desenvolvimento dos circuitos supercondutores usados em computadores quânticos atuais?

Com relação ao desenvolvimento dos circuitos supercondutores, o experimento transformou o chip clássico em “matéria quântica” controlável. Os laureados mostraram, na prática, que um circuito elétrico pode ser um sistema quântico. Ao estudar junções Josephson — dois supercondutores separados por uma barreira isolante —, observaram níveis de energia quantizados e tunelamento quântico macroscópico em chips supercondutores. Em suma: esses experimentos definiram o “kit de engenharia” que possibilita fabricar, controlar e escalar esses microequipamentos para computação quântica.

Quais são os principais desafios para explorar o efeito túnel quântico em dispositivos macroscópicos mais complexos?

Creio que explorar o efeito de tunelamento quântico em chips cada vez mais complexos exige isolamento extremo para conter a decoerência — processo pelo qual um sistema quântico perde suas propriedades. Dentre outros aspectos relacionados com os materiais e um projeto preciso do ambiente eletromagnético.

O reconhecimento desse trabalho indica uma valorização maior das pesquisas que unem física fundamental e engenharia quântica?

Sim, esse Nobel sinaliza claramente a valorização da fronteira que junta física fundamental e engenharia quântica. Ele premia descobertas conceituais — níveis quantizados e tunelamento em circuitos— provadas em um chip, que viraram base de qubits e sensores. Reconhecer esse trabalho é admitir que, hoje, avançar a física e construir dispositivos quânticos são partes do mesmo projeto. Ressalto que essa premiação se dá no Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas, promovido pela Organização das Nações Unidas, para divulgar o impacto das tecnologias quânticas na sociedade. Comemora-se ainda o centenário da criação da Mecânica Quântica por Werner Heisenberg e independentemente por Paul Dirac e Erwin Schrödinger. (IA)

 


Mais Lidas