É um erro imaginar que complicações obstétricas ficam restritas ao período gestacional. Elas costumam ter efeitos duradouros na saúde cardiovascular das mulheres. Pesquisas recentes, conduzidas pela Intermountain Health, nos Estados Unidos, e pela Universidade Airlangga, na Indonésia, mostram que tanto os distúrbios hipertensivos da gravidez (DHG) quanto a hemorragia pós-parto (HPP) elevam, por anos, o risco de doenças cardíacas, acidentes vasculares, tromboses e até morte.
No primeiro estudo, apresentado nas Sessões Científicas da Associação Americana do Coração de 2025, pesquisadores analisaram 218.141 nascimentos em 22 hospitais entre 2017 e 2024. Constataram que mulheres que desenvolveram DHG, como hipertensão gestacional, pré-eclâmpsia ou eclâmpsia, enfrentaram risco consideravelmente maior de complicações cardiovasculares nos cinco anos seguintes ao parto.
"Qualquer forma de hipertensão durante a gravidez aumenta significativamente o risco cardiovascular e o risco de morte", afirma Kismet Rasmusson, pesquisadora principal. Segundo ela, esse perigo é ainda mais acentuado em casos de eclâmpsia: "Essa condição está presente em mulheres com hipertensão crônica antes da gravidez e é ainda mais pronunciado quando há DHEG".
Os dados revelam que 19,7% das pacientes avaliadas receberam diagnóstico de DHEG, frequentemente acompanhado de fatores adicionais de risco, como obesidade, tabagismo e diabetes. A condição esteve associada a probabilidade até 13 vezes maior de insuficiência cardíaca, além de riscos ampliados de AVC, ataque cardíaco, doença arterial coronariana e morte. Rasmusson defende uma abordagem mais intensa de cuidado nesses casos. "Na Intermountain, estamos integrando a atenção primária e a cardiologia às equipes de atendimento para pacientes de alto risco, criando um modelo abrangente de assistência clínica."
Atenção no futuro
Ginecologista e obstetra do Hospital Anchieta, o professor da Universidade Católica de Brasília Fábio Passos admite que profissionais da área focam muito no período da gestação e no parto em si. "No entanto, o que esse estudo e muitos outros nos mostram é que a gravidez é um poderoso preditor da saúde futura da mulher. Ela é um 'teste' natural que expõe vulnerabilidades cardiovasculares que, de outra forma, poderiam passar despercebidas por anos."
Para o professor, é necessário conscientizar não somente as mulheres, mas também a classe médica e os gestores de saúde de que investir na saúde de pacientes que tiveram DHEG é prezar pela saúde pública a longo prazo. "Isso significa prevenir mortes e doenças cardiovasculares em uma população que está no auge de sua vida produtiva e familiar. Esse estudo é um poderoso lembrete de que o cuidado com a mãe vai muito além do nascimento do bebê, ele se estende por toda a sua jornada de vida. É um desafio, mas também uma enorme oportunidade para realmente inovar na forma como cuidamos da saúde materna."
Cuidado prolongado
A urgência por vigilância prolongada da saúde feminina após uma gestação também aparece em outra análise, publicada na revista The Journal of Maternal-Fetal & Neonatal Medicine, que reuniu dados de mais de 9,7 milhões de mulheres de diversos continentes. A revisão destaca que aquelas que sofreram hemorragia pós-parto têm risco 1,76 vez maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares e 2,10 mais chances de ter tromboembolias.
Embora seja mais intenso no primeiro ano, o risco pode persistir por até uma década e meia, especialmente entre mulheres que também apresentaram hipertensão gestacional. "A hemorragia pós-parto (HPP) tem sido vista por muito tempo como uma emergência que termina assim que o sangramento para. Mas nossas descobertas mostram que ela pode ter efeitos duradouros na saúde cardíaca da mulher", destaca a autora principal, Manggala Pasca Wardhana. Ela defende mudanças nas políticas públicas. "Mulheres que apresentam sangramento intenso poderiam ter acesso a exames cardiovasculares de rotina."
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Conforme Leonardo Coelho, obstetra especialista em gestação de alto risco e coordenador da emergência da Maternidade Brasília, da Rede Américas, a hemorragia pós-parto é uma emergência obstétrica grave e conhecida, ocupando os primeiros lugares de morbimortalidade materna no mundo inteiro. "O novo estudo nos traz uma preocupação ainda maior para a condição, pois as evidências evidenciam que os efeitos da HPP podem ir além do parto. Mulheres que tiveram esse tipo de sangramento no período peri-parto apresentam maior risco de desenvolver doenças cardiovasculares e tromboses nos anos seguintes, um risco que pode permanecer elevado por mais de uma década."
Segundo o especialista, esse efeito é duradouro porque, possivelmente, a perda de sangue intensa coloca o organismo sob grande estresse, o coração precisa trabalhar mais para compensar a queda do volume circulante, a anemia reduz a oferta de oxigênio aos tecidos e a resposta inflamatória pode afetar os vasos sanguíneos e a coagulação. "Além disso, muitas vezes a hemorragia ocorre em gestantes que já tinham fatores de risco, como pré-eclâmpsia, cesarianas prévias e anemia. Por isso, a HPP não deve ser encarada somente como um evento isolado do dia do parto, mas como um sinal importante de que essa mulher precisa de acompanhamento cardiovascular mais atento ao longo da vida. Com informação adequada e seguimento médico regular é possível reduzir esse risco."
O coautor Fiqih Faizara Ustadi ressalta a complexidade dessa relação. "São necessárias mais pesquisas para melhor compreender os mecanismos e desenvolver estratégias para a prevenção e o tratamento dessas complicações potencialmente fatais."
Leia amanhã: "De olho no quadro psicológico das mães", sobre a saúde mental no puerpério.
