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Adib Abdouni alerta: feminicídio expõe a falência do Estado

Para o advogado, feminicídio revela a erosão dos direitos fundamentais e exige reação jurídica contra violência e desinformação afetiva

Adib Abdouni, advogado Constitucionalista e Criminalista
 -  (crédito: Fabiano Moraes)
Adib Abdouni, advogado Constitucionalista e Criminalista - (crédito: Fabiano Moraes)

O feminicídio, tema de crescente preocupação no Brasil, é um reflexo não apenas da violência física, mas também das desigualdades históricas e culturais que persistem na sociedade. O advogado constitucionalista e criminalista Adib Abdouni aborda, de forma aprofundada, os aspectos legais, sociais e psicológicos dessa grave violação aos direitos humanos, destacando a necessidade de prevenção estruturada e de políticas públicas efetivas para proteger mulheres em situação de vulnerabilidade.

A seguir, o artigo na íntegra:


O feminicídio, crime de contornos brutais e raízes socioculturais profundas, representa uma chaga aberta na estrutura constitucional brasileira.
A morte de mulheres por razões de gênero, embora rotineiramente tratada como evento criminal isolado, é, na verdade, a face final de um ciclo de violência que desafia a eficácia normativa da Constituição Federal de 1988, notadamente seus fundamentos mais elementares: a dignidade da pessoa humana, a igualdade de gênero, o direito à vida e à integridade física e psíquica.
A positivação do feminicídio no ordenamento jurídico, por meio da Lei nº 13.104/2015, que inseriu o §2º-A ao artigo 121 do Código Penal, constituiu marco relevante no reconhecimento do caráter estrutural da violência de gênero.
Ao qualificá-lo como circunstância agravante nos crimes de homicídio praticados contra a mulher “por razões da condição do sexo feminino”, o legislador buscou evidenciar que tais mortes não decorrem de conflitos interpessoais comuns, mas de relações de dominação historicamente assentadas na desigualdade de poder entre homens e mulheres, contudo, a mera tipificação penal, embora necessária, não se revela suficiente.
O Direito Penal, enquanto instrumento de controle social formal, opera no campo da repressão e da resposta punitiva, sua função é limitada e tardia.
O que se exige, em face do feminicídio, é uma resposta que anteceda o crime e atue no plano da prevenção estrutural, como exige o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, consagrado pelo Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade e derivado do artigo 5º, §1º, da Constituição Federal.
Não se pode olvidar que o artigo 226, §8º, da Carta Magna impõe ao Estado o dever de "assegurar assistência à família na pessoa de cada um de seus integrantes, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações", esta norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata não é uma simples cláusula programática; trata-se de um mandado de atuação que obriga os Poderes Públicos à implementação de políticas públicas eficazes de enfrentamento à violência doméstica e familiar.
O descumprimento reiterado dessa norma configura violação sistemática aos direitos fundamentais das mulheres, especialmente ao direito à vida, à integridade física e moral (art. 5º, caput e incisos III e X), à igualdade (incisos I e XLII), à intimidade (inciso X) e à proteção contra tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante (inciso III).
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, surgiu para dar concretude a esse comando constitucional, incorporando compromissos internacionais do Brasil, como a Convenção de Belém do Pará.
A norma estabelece um microssistema de proteção integral à mulher, com medidas protetivas de urgência (art. 22), criação de juizados especializados (art. 14), além da imposição de políticas públicas permanentes de acolhimento, reeducação do agressor e assistência multidisciplinar à vítima, mesmo diante de uma base legal sólida, os índices de feminicídio continuam alarmantes.
Em grande medida, essa realidade decorre de deficiências estatais no cumprimento da função preventiva, a exemplo das Delegacias especializadas são subdimensionadas, o deferimento de medidas protetivas sofre com morosidade injustificável e a rede de acolhimento psicossocial é fragilizada pela ausência de financiamento e capacitação técnica.
Além disso, há um fenômeno contemporâneo que desafia o modelo tradicional de enfrentamento à violência de gênero: a disseminação irresponsável de discursos sobre relações afetivas no ambiente digital, muitas vezes por influenciadores que, sem qualquer formação técnica ou ética, propagam conteúdos que reforçam estereótipos de gênero, normalizam comportamentos possessivos e sugerem “técnicas de reconquista” que, em realidade, estimulam perseguições e abusos emocionais.
Tais discursos, ainda que travestidos de entretenimento ou autoajuda, podem violar frontalmente os direitos da personalidade, promovendo verdadeira reificação da mulher.
O Direito Civil, ao proteger a dignidade e a integridade moral da pessoa (art. 12 e 20 do Código Civil), impõe limites objetivos à liberdade de expressão.
Quando esses conteúdos incentivam práticas que contribuem para a deterioração psíquica de indivíduos vulneráveis ou reiteram dinâmicas abusivas, devem ser considerados ilícitos civis e, em certos casos, condutas penalmente relevantes, a depender do nexo causal com o dano provocado.
É inegável que o Estado brasileiro precisa aprimorar o marco normativo de regulação das plataformas digitais.
A proteção da integridade psicológica e emocional deve ser elevada ao mesmo patamar da proteção à honra, à imagem e à vida, a ausência de filtro técnico para conteúdos que se propõem a “aconselhar” casais ou indivíduos em sofrimento afetivo expõe milhares de pessoas a desinformação perigosa, especialmente quando tais conteúdos se tornam lucrativos, alcançando milhões de visualizações sem qualquer responsabilização de seus criadores.
O feminicídio, nesse contexto, não é apenas o ato final de um ciclo violento, é também resultado da desinformação afetiva institucionalizada, da fragilidade na formação emocional da população, e da omissão estatal diante de uma nova camada de risco psíquico e relacional.
Do ponto de vista penal, a resposta não pode ser apenas punitiva, ainda que o feminicídio demande sanção exemplar, e, o art. 121, §7º, do Código Penal preveja reclusão de 12 a 30 anos para sua prática, a eficácia da pena está diretamente condicionada à capacidade de prevenção.
Isso exige a integração entre o sistema penal e as políticas públicas de saúde mental, educação e cultura, sendo necessário promover a formação transversal de magistrados, delegados, promotores e defensores públicos em psicologia jurídica, relações de gênero e dinâmica das violências invisíveis.
O reconhecimento da complexidade do vínculo afetivo adoecido é condição indispensável para a concessão de medidas protetivas eficazes e decisões judiciais sensíveis ao risco concreto da vítima, sem se afastar, o acesso universal à terapia de casal, atendimento psicológico individual e grupos de apoio para mulheres em situação de vulnerabilidade deve ser estruturado como política pública de Estado, e, não como exceção localizada em projetos-piloto.
A Constituição não admite omissão protetiva diante da letalidade previsível.
O feminicídio é previsível, anuncia sua chegada em ciclos de agressão verbal, controle financeiro, manipulação emocional e isolamento da vítima, ignorar esses sinais, naturalizá-los ou medi-los com os critérios da moral tradicional é compactuar com a tragédia.
A banalização do sofrimento feminino travestida de discurso amoroso nas redes sociais representa hoje uma das mais sutis e perversas formas de violência psicológica coletiva, enfrentá-la exige do Estado uma nova postura regulatória, exige da sociedade civil responsabilidade comunicacional e exige, sobretudo, do sistema de justiça uma atuação pró-ativa, interdisciplinar e fundada na Constituição, que, antes de ser norma, é pacto civilizatório.
A proteção da mulher, em seu corpo e, em sua psique, não é favor, é dever constitucional e imperativo ético de uma República que se pretende democrática, plural e humana.

Adib Abdouni, advogado Constitucionalista e Criminalista

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postado em 15/08/2025 16:29 / atualizado em 15/08/2025 16:31
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