Visão do direito

Cléber Lopes de Oliveira: O risco de relaxamento da inviolabilidade do lar

Nos últimos anos, passamos a assistir a concessão de uma profusão de mandados judiciais de busca e apreensão e a espetacularização da ação policial, o que provocou uma série de constrangimentos que jamais serão reparados

Cleber Lopes também atua na defesa de Ibaneis Rocha       -  (crédito: Minervino Junior/CB/D.A Press)
Cleber Lopes também atua na defesa de Ibaneis Rocha - (crédito: Minervino Junior/CB/D.A Press)
postado em 14/03/2024 03:55

Por Cléber Lopes de Oliveira*

No início deste mês, em uma decisão apertada por 6 votos a 5, o Supremo Tribunal Federal negou um pedido de Habeas Corpus e considerou legal a entrada da Polícia Militar, sem mandado judicial, na casa de um homem que teve uma atitude considerada suspeita pelos policiais. O morador correu para a sua casa ao avistar a aproximação dos policiais. A decisão do Supremo, que julgou um caso específico sem entrar no mérito constitucional da questão, abre um precedente grave e reduz consideravelmente a proteção dos cidadãos contra eventuais abusos do Estado.

Nos últimos anos, passamos a assistir a concessão de uma profusão de mandados judiciais de busca e apreensão e a espetacularização da ação policial, o que provocou uma série de constrangimentos que jamais serão reparados. O lar, a correspondência e o sigilo telefônico, protegidos e garantidos pelo artigo 5º da Constituição, têm sido violados ao menor indício de suspeita, sem cerimônia e de forma corriqueira. A isso sucede-se uma série de injustiças e condenações prévias, pré-julgamentos que levam os alvos de operações truculentas e midiáticas à condenação social.

Mesmo sem ter qualquer condenação judicial ao final de uma investigação, são incontáveis os brasileiros que tiveram suas vidas destroçadas, suas empresas quebradas e suas contas bancárias encerradas, por decisão do departamento de compliance dos bancos.

Até advogados foram alvos de ações de busca e apreensão, o que é absolutamente inaceitável. Somem-se a isso os danos emocionais de famílias que enfrentaram, ao amanhecer e de forma agressiva, a entrada de agentes policiais armados em suas residências.

A inviolabilidade do lar, da correspondência e do sigilo telefônico têm sido tratadas, infelizmente, sem a devida importância e respeito. Com a recente decisão do Supremo, chega-se a uma situação ainda mais grave, pois admite-se que a autoridade policial julgue a pertinência de uma invasão domiciliar, a despeito da expressa e clara garantia constitucional. Mesmo sem que tenha efeito vinculante, o julgamento do HC pelo STF está a ser seguido em algumas decisões judiciais, o que pavimenta o caminho para a atuação arbitrária das polícias.

Há um conjunto de razões para preocupação. Primeiro, pelo caráter subjetivo da decisão policial de invadir uma casa. O que é uma atitude suspeita? Atenção: não estamos falando de criminosos procurados, fugitivos, nem de flagrante. Um jovem que entra em casa com medo da polícia adota uma atitude suspeita? Será que nenhum de nós, quando vê a aproximação de um carro da polícia, tem uma pontinha de receio? Será que nenhum dos nossos filhos adolescentes teme a chegada de uma viatura policial? A nossa polícia é sinônimo de segurança ou existe motivo para alguma preocupação com a aproximação policial? A existência dessas dúvidas já é uma resposta.

Sob um segundo aspecto, o agente policial ganha o direito de julgar a atitude de um cidadão e a recorrer a uma ação de força para ingressar num espaço cuja proteção é garantida pela Constituição. Por fim, e não menos grave, é evidente que os mais pobres e os moradores de áreas periféricas estarão mais sujeitos ao julgamento policial de suas atitudes.

O Estado brasileiro tem falhado terrivelmente no combate à criminalidade. Isso é inegável. Não parece, no entanto, que o arrombamento de portas aos ponta-pés pela autoridade policial, sob o argumento singelo de que o morador daquele local teve uma atitude suspeita, seja uma medida efetiva de redução da criminalidade. A resistência de parcela das polícias militares ao uso de câmeras nos uniformes é um indicativo de que alguma coisa pode não correr de maneira tão protocolar nas ações de segurança.

Cabe ao Estado proteger os cidadãos de bem, seja na prevenção de crimes seja na punição de criminosos. Só quem tem o poder de autorizar medidas coercitivas e investigatórias é a Justiça, sob o risco de o Estado se transformar em promotor de injustiças.

Diante da gravidade da decisão do Supremo e da forma como esta tem sido entendida pelos Tribunais, entidades de defesa da sociedade, notadamente a Ordem dos Advogados do Brasil e o sistema de Justiça, precisam se debruçar sobre o tema, a fim de evitar que ocorram injustiças e situações irreparáveis de violência.

*Advogado criminalista

 

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