Por José Carlos Abissamra Filho* — O artigo 226 do Código de Processo Penal regulamenta o procedimento para o reconhecimento de pessoas no âmbito criminal, estabelecendo, por exemplo, que, quando houver essa necessidade, a pessoa que se busca identificar será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tenham alguma semelhança, convidando-se a vítima ou testemunha a apontá-la.
No entanto, por décadas, vingou o entendimento jurisprudencial de que referido procedimento seria mera recomendação legal, e não uma exigência, algo que seria burocrático e não obrigatório, mas tão somente proposto pelo legislador.
Esse tipo de discordância entre o Judiciário e o Legislativo — para usar uma expressão menos técnica, mas mais comunicativa — é corriqueira e não necessariamente disfuncional, considerando que os Poderes da nossa República são harmônicos entre si, mas independentes (art. 2º da Constituição Federal de 1988).
Muito interessante, por exemplo, é a discordância em relação à necessidade de fundamentação das decisões judiciais. Vigora até hoje o entendimento jurisprudencial de que o texto constitucional exige a explicitação, pelo órgão jurisdicional, das razões de seu convencimento, "sem necessidade, contudo, do exame detalhado de cada argumento esgrimido pelas partes".
Em outras palavras, o Poder Judiciário desenvolveu um entendimento, via jurisprudência, que lhe permite não enfrentar todos os argumentos apresentados pelas partes no processo.
Não foi à toa que o novo Código de Processo Civil, elaborado pelo Congresso Nacional em 2015 e, atualmente em vigor, enfrentou diretamente essa questão ao estabelecer, em seu art. 489, § 1º, IV, que "não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, seja sentença ou acórdão, que não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador".
Ou seja, o novo Código de Processo Civil determinou que o Poder Judiciário deve, sim, enfrentar os argumentos apresentados pelas partes no processo, o que, por incrível que pareça, não surtiu nenhum efeito! No cotidiano da Justiça Criminal, é absolutamente comum que o juiz ignore aquilo que não entenda deva ser enfrentado, deixando a parte sem resposta.
Mas a resistência a algumas leis editadas pelo Congresso Nacional não para por aí.
Um exemplo clássico é o entendimento de que alguns prazos do processo penal podem ser desrespeitados pelas autoridades sem nenhuma consequência, como no caso da negativa de reconhecimento do excesso de prazo na prisão preventiva da pessoa acusada. Para justificar tal conduta, argumenta-se que a manutenção do acusado em prisão preventiva deve ser avaliada mediante critérios de razoabilidade.
Em bom português, isso significa que a extensão do encarceramento será aferida com base em critérios não descritos na lei, mas definidos pelo julgador conforme seu entendimento de razoabilidade - o que é frontalmente ilegal.
Em 2019, o legislador enfrentou esse problema ao estabelecer, no artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, que, "decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 dias, [...] sob pena de tornar a prisão ilegal", ao que a jurisprudência, novamente, deu de ombros.
O desapego à forma legal e às regras postas chega a tal ponto - e isso, sim, pode levar à disfuncionalidade do sistema jurídico penal - que boa parte dos ritos processuais não são mais respeitados. Foi o que fez o CNJ, por exemplo, ao decidir administrativamente, em violação à competência do Congresso Nacional para legislar sobre matéria penal e processual (art. 22, I, e art. 59 da CF/88), pelo fim dos julgamentos públicos, estabelecendo que, doravante, as sustentações orais serão enviadas por vídeo, sem a instalação de julgamento público e sem a presença das partes!
Isso é preocupante. Aos poucos, o processo penal no Brasil vai se tornando literalmente um espaço sem lei, no qual cada juiz de direito e até ministros das Cortes Superiores adotam o rito que entendem por bem, mesmo que esse seja inexistente. Essa situação, sim, pode ser altamente perniciosa, pois compromete não apenas a Justiça, mas a própria funcionalidade do direito e o desenvolvimento do país, que tanto precisa de segurança jurídica.
O sistema jurídico é um sistema público como qualquer outro, que demanda regras claras e respeito à lei. Se continuarmos nesse caminho, em algum momento não teremos mais Direito e, muito menos, ordem jurídica a ser defendida.
José Carlos Abissamra Filho, advogado criminalista, doutor e mestre pela PUC-SP, foi diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) por quase uma década e é, atualmente, presidente da Comissão Especial de Advocacia Criminal da OAB/SP.
Advogado criminalista, doutor e mestre pela PUC-SP, presidente da Comissão Especial de Advocacia Criminal da OAB/SP*
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