
Em 28 de junho, é celebrado o dia internacional do orgulho LGBTQIAPN , um marco na luta por direitos, visibilidade e respeito à diversidade sexual e de gênero. Na mesma data, o juiz de direito do Tribunal de Justiça de Pernambuco publicou um vídeo em seu perfil no Instagram com a pergunta: "Você tem orgulho de ser quem você é?" Na postagem, o magistrado compartilhou de forma sensível seu processo de aceitação, refletindo sobre o caminho até se sentir confortável e orgulhoso em sua própria pele. Aproveitando a ocasião, o caderno Direito&Justiça entrevistou para debater melhor essa questão.
O senhor me conta um pouco mais sobre sua história, quando surgiu o interesse pelo curso de direito? E, posteriormente, o que o motivou a seguir a carreira na magistratura?
Sou nordestino, nascido em Aracaju com muito orgulho. Morei e estudei lá até concluir a faculdade de direito. Depois disso, fui morar no Rio de Janeiro para estudar, porque meu sonho sempre foi ser juiz. Desde os 12 anos, eu dizia que queria ser juiz para ajudar a resolver os problemas das pessoas. Tem até uma história familiar: eu costumava ir com minha mãe ao supermercado e, em determinado momento, descobri uma estante com códigos jurídicos da Editora Saraiva. Eu pegava aqueles livros e ficava pedindo pra minha mãe comprar. Ela nunca comprava, claro (risos), mas isso virou até piada na família: com 12 anos, eu já queria comprar códigos jurídicos! Então é isso. Eu sou essa pessoa que veio pro mundo sabendo que queria ser juiz, e nem sei dizer exatamente o porquê. Não tinha nenhuma referência na família nessa área. Hoje sou juiz de direito. Mas sempre digo: a toga não me define. A toga é só uma dimensão da minha vida. Ela me complementa, mas não me resume.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Em que momento o senhor se reconheceu enquanto pessoa LGBT? Como foi esse processo de auto descoberta e aceitação?
Creio que não foi exatamente um momento, mas sim, todo um processo. Cheguei à magistratura um pouco antes de completar 27 anos. Aquele menino cresceu e virou juiz. Mas, por muito tempo, eu não quis encarar os desafios de ser um homem gay. Quando comecei a exercer a magistratura, percebi que precisava revisitar todas aquelas partes de mim que eu evitava olhar. E aí começou minha jornada de aceitação. Eu sofri muito. Me senti muito sozinho, na infância, na adolescência... E não tenho dúvidas de que não estaria aqui hoje se não tivesse minha rede de apoio. E, especialmente, se não fosse a minha fé. Eu fui conduzido pela espiritualidade para estar aqui. Gravei esse vídeo porque senti que era hora de inspirar outras pessoas, porque eu não tinha referências. E esse vídeo surgiu pra isso: pra que eu pudesse ser uma referência para quem precisa.
O senhor diria que, depois de se tornar juiz, sentiu-se mais livre para viver sua identidade de forma plena? Como se, ao conquistar estabilidade financeira, realizar um sonho pessoal e alcançar um cargo de respeito, tivesse ganhado também mais autonomia para ser quem você é?
Sim, eu senti. Porém, eu segui sentindo medo de retaliações caso eu tornasse minha orientação sexual pública. Por muito tempo, eu me omiti. Enquanto ouvia as pessoas falando abertamente sobre seus relacionamentos, eu permanecia calado. Só para você ter uma ideia: estou em um relacionamento há 10 anos com o meu companheiro, com quem sou casado. E foi só agora, na minha festa de 40 anos, que nossas famílias estiveram juntas pela primeira vez. A gente enfrenta muitas barreiras. A gente dá abraços atrás de portas fechadas. Comemora o Dia dos Namorados em datas diferentes, só para não chamar atenção. A gente se esconde, entende? Durante muito tempo, eu apresentava o Ayrton como meu amigo, mesmo já estando em um relacionamento sério com ele. É um silenciamento que não é individual, é imposto pelas estruturas sociais e isso tem um custo emocional enorme.
No vídeo publicado nas redes sociais, o senhor comentou que, por diversas vezes, rezou para que "tudo aquilo passasse". O que exatamente o senhor quis expressar com essa frase?
Eu rezava para que eu não sentisse mais aquilo, mas com o tempo, fui percebendo que esse não era o caminho. Quando era criança, não entendia que ser diferente não era algo errado. Por isso, eu rezava para que tudo aquilo passasse. Mas não passou nem vai passar. E hoje eu nem quero mais que passe. Porque é assim que eu sou. Eu celebro quem sou dessa forma. E só estou onde estou porque também sou um homem gay. Foram essas dores que me construíram e me trouxeram até aqui. Minha relação com a espiritualidade passou a ser sobre o acolhimento de quem eu sou. Porque negar quem eu sou não é e nunca será a solução.
Na sua percepção, o ambiente da magistratura tem se mostrado verdadeiramente receptivo à diversidade, especialmente em relação à orientação sexual e identidade de gênero?
A magistratura é uma instituição secular, marcada por formalismos, mas felizmente, temos avançado muito. Tenho profundo orgulho do Conselho Nacional de Justiça do nosso país. O Brasil reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo, e, a partir desse marco, diversas políticas judiciárias foram ampliadas. Em 2024, foi criado o Fórum Nacional de Promoção dos Direitos da População LGBTQIAPN , mais um passo importante na consolidação de direitos e garantias. Mas ainda temos muito a caminhar. Infelizmente, no Brasil, praticamente todos os direitos da população LGBTQIAPN foram assegurados por decisões judiciais. Não há, até hoje, uma legislação específica e abrangente que reconheça e garanta esses direitos de forma plena. Por isso, acredito que é necessário um esforço coletivo, envolvendo todas as instituições, a sociedade civil organizada e cada cidadão, para enfrentarmos essas desigualdades e construirmos um mundo melhor. Um mundo mais justo, mais inclusivo, em que a diversidade seja, de fato, respeitada e celebrada.
- Leia também: Vozes LGBTQIA+ na literatura brasileira
Na visão do senhor, o que é ter orgulho de si mesmo? Como foi o processo até o senhor passar a se orgulhar de si próprio?
Certa vez, eu estava contando que, toda vez que ia dizer para alguém que sou gay, sempre começava dizendo assim: "Não se diz opção sexual. A gente não escolhe, a gente simplesmente é assim. Então, ninguém deveria usar a expressão 'opção sexual', porque ela não é adequada. "E eu continuava: se eu pudesse escolher, eu não escolheria ser gay. Porque ninguém escolhe o caminho mais difícil. Mas aí, o namorado de um amigo meu, na época, virou para mim e disse algo que nunca esqueci. Ele falou: "Engraçado... hoje eu posso te dizer que, se eu pudesse escolher, eu escolheria ser gay. Eu escolheria ser exatamente do jeito que sou. Porque foi a partir disso que me tornei quem sou. "Essa fala ecoou na minha mente durante muito tempo. Me fez pensar: será que eu tenho orgulho de ser quem eu sou? Hoje, posso dizer: eu me orgulho de ser quem eu sou.
Direito e Justiça
Direito e Justiça
Direito e Justiça
Direito e Justiça