Delação Premiada

Vale a pena delatar? O impacto da colaboração premiada de Mauro Cid

STF confirma validade da delação de Mauro Cid, que recebe pena branda enquanto demais réus do golpe de 2022 enfrentam condenações altas

dju-1109-dj_MAURO_SID -  (crédito: Mauenilson Freire)
dju-1109-dj_MAURO_SID - (crédito: Mauenilson Freire)

A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) condenou, na última quinta-feira, o núcleo central da Ação Penal (AP) 2668 pela tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Ao definir a dosimetria, o colegiado aplicou penas altas a todos os réus, com exceção de Mauro Cid, que recebeu sanção significativamente mais branda em razão do reconhecimento de seu acordo de colaboração premiada, sendo condenado à pena alternativa de prisão inferior a dois anos em regime aberto.

Na mesma decisão, o ministro Alexandre de Moraes determinou a restituição dos bens apreendidos de Mauro Cid, estendendo os benefícios ao pai, à esposa e à filha mais velha do colaborador, além de determinar à Polícia Federal a adoção de medidas para garantir a segurança dele e de seus familiares. "O Estado não pode, após receber a colaboração, abandonar o colaborador", justificou o ministro. Assim, foram reconhecidos todos os benefícios previstos no acordo.

Ao fixar a dosimetria, Moraes afastou a possibilidade de perdão judicial e reiterou que, conforme já decidido pela Corte, não cabe indulto presidencial, anistia do Congresso Nacional ou perdão judicial em crimes contra a democracia. Segundo o relator, embora os Três Poderes possam conceder diferentes espécies de clemência constitucional, tais instrumentos não podem ser utilizados para beneficiar tais crimes. "Obviamente, esses institutos não podem ser utilizados contra a Constituição, contra o Estado Democrático de Direito", afirmou.

 (COMBO) This combination of pictures created on June 07, 2025 shows (Top L-R) Navy Commander Almir Garnier arrive to attend military exercises at the Formosa Instruction Center in the state of Goias, 100 km from Brasilia, on August 16, 2021; Brazil's Minister of Justice Anderson Torres attends a meeting of Ministers of Public Security of South American countries at the Ministry of Justice in Brasilia, on June 23, 2022; Brazil's Defense Minister Paulo Sergio Nogueira delivers a speech during the opening session of the 15th Conference of Defense Ministers of the Americas (CDMA) in Brasilia, on July 26, 2022; Rio de Janeiro's mayor candidate of the Liberal Party (PL) Alexandre Ramagem gestures before the start of the television debate among Rio de Janeiro mayor candidates at the Projac Globo television network studios in Rio de Janeiro, Brazil, on October 3, 2024. (Bottom L-R) Brazilian Army General Augusto Heleno Pereira, Secretary of Institutional Security, attends a press conference to announce measures to support truck drivers and prevent future strikes, at Planalto Palace in Brasilia, on April 16, 2019; Brazil's Defence Minister Walter Souza Braga Netto delivers a speech during a ceremony to honor Brazilian military athletes who went to the Tokyo 2020 Olympic Games at the Navy Sports Headquarters in Rio de Janeiro, Brazil on September 01, 2021; Brazil's Army Lieutenant Colonel Mauro Cid, aide-de-camp to former President Jair Bolsonaro, gestures as he speaks during his testimony before the Parliamentary Inquiry Commission that investigates the acts of January 8, when an alleged coup attempt against Lula da Silva's government took place, at the National Congress in Brasilia on July 11, 2023, and Brazil's former president Jair Bolsonaro looks on during a rally in Rio de Janeiro, Brazil, on March 16, 2025. Several former Brazilian ministers and military commanders are accused of plotting with ex-leader Jair Bolsonaro to prevent President Luiz Inacio Lula da Silva from
Os condenados: almirante Almir Garnier, 24 anos de prisão; ex-ministro da Justiça Anderson Torres, 24 anos de prisão; general Paulo Sérgio, 19 anos de prisão; Alexandre Ramagem, 16 anos de prisão; general Augusto Heleno, 21 anos de prisão; general Walter Braga Netto, 26 anos e seis meses de prisão; tenente-coronel Mauro Cid, dois anos em regime aberto e o ex-presidente Bolsonaro, 27 anos e três meses de prisão. (foto: AFP)

De acordo com o advogado criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, a delação premiada surgiu como um instrumento de defesa baseado em um requisito fundamental: a espontaneidade. "Ou seja, trata-se de uma decisão pessoal do acusado em colaborar com a Justiça. Não pode haver coação, pressão ou troca ilícita", afirma.

No entanto, segundo Kakay, esse instituto acabou sendo desvirtuado na Operação Lava-Jato. "Houve um verdadeiro processo de 'prostituição' da delação, como reconheceu um subprocurador em audiência no STJ, ao admitir que as prisões preventivas prolongadas eram utilizadas para forçar os investigados a colaborar", relata. De acordo com a Procuradoria-Geral da República (PGR), foram homologados 209 acordos de delação premiada no âmbito da Lava-Jato.

A advogada criminalista, mestre em direito e presidente da Abracrim-DF, Gabriela Benfica, explica que a colaboração premiada não é uma prova em si, mas um meio de obtenção de prova. As declarações do colaborador precisam ser corroboradas por outros elementos capazes de sustentar a condenação ou, mesmo, o oferecimento da denúncia. "Assim, o colaborador relata o que sabe e, a partir daí, as autoridades buscam os elementos capazes de comprovar ou elidir essa versão apresentada", detalha.

Como funciona

Para que uma delação premiada seja considerada válida, a lei exige a voluntariedade da colaboração, ou seja, ela não pode resultar de coação. A voluntariedade, contudo, não significa necessariamente espontaneidade: o acordo pode partir da iniciativa do colaborador ou ser proposto pelas autoridades de persecução penal, desde que a adesão seja livre e consciente.

Além disso, é indispensável que o agente esteja assistido por advogado, renuncie ao direito ao silêncio e narre integralmente os fatos ilícitos de que participou, desde que relacionados à investigação, comprometendo-se a dizer a verdade e não omitir informações relevantes.

A colaboração só terá validade se for efetiva, isto é, se dela resultar pelo menos um dos seguintes objetivos:

I - identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações por eles praticadas;

II - revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;

III - prevenção de novas infrações penais decorrentes das atividades criminosas;

IV - recuperação total ou parcial do produto ou proveito das infrações;

V - localização de eventual vítima, com garantia da preservação de sua integridade física.

De acordo com Kakay, o Ministério Público não pode oferecer a delação como forma de coação. Contudo, ele afirma que, na Lava-Jato, isso se tornou prática recorrente. "Sob a coordenação do então juiz Sergio Moro, em conluio com procuradores, prendia-se apenas para forçar a colaboração. Foi essa distorção que corroeu a credibilidade da delação premiada e marcou profundamente o desgaste da própria Operação Lava-Jato", declara o advogado.

"Cito um exemplo: quando atuei como advogado de Alberto Youssef. O MP procurou Youssef na cadeia e afirmou que ele teria de delatar, sob ameaça de intensificar as investigações contra ele e contra sua família. Esse tipo de conduta não pode existir", compartilha Kakay.

Gabriela Benfica explica que, independentemente de ser proposta pelas autoridades persecutórias ou pela defesa do colaborador, a colaboração é formalizada por meio de um termo de colaboração e de confidencialidade, de natureza contratual. Nesse instrumento, as partes podem negociar os benefícios a serem concedidos em razão da colaboração.

Nos termos do art. 4º da Lei nº 12.850/2013, ao firmar um acordo de colaboração premiada, o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder perdão judicial, reduzir a pena privativa de liberdade em até dois terços ou substituí-la por restritiva de direitos, desde que o colaborador tenha contribuído de forma efetiva e voluntária para a investigação e o processo criminal.

Além disso, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se a proposta de colaboração disser respeito à infração cuja existência ainda não fosse de seu conhecimento, desde que o colaborador não seja o líder da organização criminosa e seja o primeiro a prestar colaboração efetiva nos termos da lei.

Kakay avalia que os tribunais têm conduzido de forma razoável a delimitação do uso da delação premiada e que a própria jurisprudência acabou por restringir significativamente o instituto. Ele destaca ainda que a colaboração premiada altera radicalmente a estratégia processual, já que o colaborador passa a atuar quase como um assistente de acusação.

A advogada Gabriela Benfica complementa: "Na colaboração, a função da defesa limita-se a negociar um bom benefício e a fiscalizar o cumprimento do acordo, pois há confissão e renúncia ao direito de presunção de inocência e ao silêncio."

Ela ressalta que esse modelo se distancia por completo da defesa criminal tradicional, cujo objetivo é assegurar a presunção de inocência, a ampla defesa, o devido processo legal, a paridade de armas e todas as demais garantias constitucionais, visando à absolvição ou, ao menos, a uma pena justa.

Valeu a pena delatar?

No caso do tenente-coronel Mauro Cid, seu acordo de colaboração premiada foi alvo de intensos questionamentos durante as sustentações orais das defesas dos sete réus. Os advogados alegaram que o militar teria sido coagido a depor, além de o classificarem como "mentiroso" e "irresponsável". O advogado José Luiz Mendes de Oliveira Lima chegou a afirmar que Cid teria apresentado "15 versões diferentes" sobre os fatos investigados.

Gabriela Benfica explica que as críticas se concentraram na suposta coação, diante da postura do relator durante a audiência, quando advertiu severamente o colaborador de que poderia retornar à prisão, caso faltasse com a verdade. Ela também destaca episódios em que o ministro apontou contradições e omissões, frisando que documentos como celulares, mensagens e laudos periciais revelaram inconsistências no conteúdo da colaboração.

Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes afastou a tese de coação, reforçando a voluntariedade da colaboração e observando que as defesas confundiram os oito primeiros depoimentos com oito delações distintas e contraditórias. "Beira a litigância de má-fé dizer que os oito primeiros depoimentos foram oito delações contraditórias. Ou não leram os autos, ou beira o total desconhecimento dos autos", criticou o ministro. No mesmo sentido, os ministros Flávio Dino, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin também votaram pela manutenção da validade do acordo.

Para o advogado Kakay, esse é um exemplo de delação premiada bem-sucedida. Apesar de ter sido duramente atacado pelas defesas cujos clientes foram citados, o acordo foi validado pelo Supremo e demonstrou eficácia. "Cid, inclusive, já teria direito a pleitear a liberdade, uma vez que permaneceu preso por período superior ao previsto em seu acordo", afirma.

Segundo o jurista, esse caso representa um incentivo à consolidação do instituto da colaboração premiada, conduzido desta vez, ao que tudo indica, dentro da legalidade, com ampla discussão e respeito ao direito de defesa. "Apesar das críticas, o Supremo manteve a validade integral do acordo, reforçando sua legitimidade", conclui.

 


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postado em 18/09/2025 05:00
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