Intoxicação por metanol

Quem pode ser responsabilizado nos casos de intoxicação por metanol

Especialistas apontam que toda a cadeia de fornecimento de bebidas pode ser responsabilizada por intoxicações por metanol, com sanções cíveis e criminais que vão de indenizações a penas de prisão

Casos de intoxicação por metanol após o consumo de bebidas alcoólicas no estado de São Paulo têm gerado preocupação em todo o país. A substância é altamente tóxica e pode causar sequelas graves ou até mesmo levar à morte.

De acordo com o secretário estadual da Saúde de São Paulo, Eleuses Paiva, até ontem foram notificados 22 casos suspeitos de intoxicação por metanol no estado. Desses, sete foram confirmados, incluindo um óbito. Outras quatro mortes seguem sob investigação. Além de São Paulo, a Agência Pernambucana de Vigilância Sanitária (Apevisa) recebeu, na terça-feira, a notificação de três possíveis casos de intoxicação por metanol. As vítimas são três homens: dois morreram e o terceiro perdeu a visão.

Diante desse cenário, o país vive um clima de insegurança, em que o consumo recreativo de bebidas alcoólicas pode representar risco de vida ou resultar em sequelas irreversíveis. Surge, então, a questão: quem pode ser responsabilizado pelas mortes e pelos danos irreparáveis causados pela adulteração?

Segundo Fernando Moreira, advogado especialista em direito societário, governança e compliance, toda a cadeia de fornecimento pode ser responsabilizada solidariamente. Isso inclui fabricante, produtor, importador e, em certos casos, também o comerciante, conforme os artigos 12 e 13 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). "O consumidor tem o direito de cobrar indenização de qualquer um deles. Quem pagar poderá, depois, exercer o direito de regresso contra o real causador do dano", explica.

Ele ressalta que, nesses casos, a responsabilidade é objetiva: não exige a comprovação de culpa. Basta demonstrar o defeito do produto (a presença de metanol), o dano sofrido (intoxicação, sequelas ou morte) e o nexo de causalidade. O fabricante responde por colocar no mercado um produto seguro; o distribuidor, por garantir a integridade durante transporte e armazenamento; e o comerciante, como último elo da cadeia, por selecionar fornecedores idôneos e recusar produtos suspeitos, seja por embalagens violadas, rótulos precários sejam preços incompatíveis com o mercado.

Embora o artigo 13 do CDC preveja a responsabilidade do comerciante como subsidiária, a jurisprudência tem flexibilizado essa regra em casos que envolvem risco à saúde e segurança do consumidor. "A interpretação dominante é que, ao disponibilizar o produto, o comerciante assume o risco da atividade e se integra à cadeia de fornecimento, podendo ser responsabilizado solidariamente, sobretudo quando não adota cautelas mínimas de verificação", complementa.

Dessa forma, as vítimas e seus familiares podem e devem pedir indenização por danos materiais, morais, estéticos e solicitar o pagamento de pensão. A ação pode ser movida contra qualquer integrante da cadeia de fornecimento, com base nos artigos 12 e 13 do CDC.

Além da esfera cível, com a obrigação de indenizar por danos materiais e morais, o especialista lembra que a adulteração, distribuição e venda de bebidas adulteradas também configuram crimes contra as relações de consumo e contra a saúde pública, sujeitando os responsáveis a sanções penais que vão de multas à reclusão.

Segundo Rodrigo Sayeg, advogado e sócio do Hslaw e doutor em direito empresarial e cidadania, os responsáveis podem responder por diferentes crimes previstos no Código Penal. Entre eles, o envenenamento de substância alimentícia ou medicinal (artigo 270), com pena de 10 a 15 anos de reclusão; a adulteração, falsificação ou corrupção de alimentos e bebidas (artigo 272), cuja pena varia de quatro a oito anos, além de multa; o emprego de substância não permitida na fabricação de produtos de consumo (artigo 274), com pena de um a cinco anos e multa; e a fabricação ou venda de substâncias nocivas à saúde (artigo 278), punida com um a três anos de detenção e multa.

Dependendo do resultado da ingestão, como intoxicação grave, sequelas permanentes ou morte, os envolvidos também podem ser acusados de lesão corporal, homicídio e crimes contra a saúde pública. Além disso, diante do fluxo financeiro e da organização necessária para tais práticas, podem ser enquadrados ainda em crimes de lavagem de dinheiro, associação criminosa ou, até mesmo, organização criminosa.

De onde vêm essas bebidas?

A adulteração pode ocorrer em diferentes etapas — produção, envase ou redistribuição — sempre fora dos canais legais e sem qualquer controle sanitário, por meio de fábricas improvisadas ou postos clandestinos.

Para Fernando Moreira, existem quatro principais rotas de origem das bebidas adulteradas:

  • Produção clandestina: fabricação em alambiques de "fundo de quintal", sem qualquer fiscalização.
  • Envase fraudulento: reaproveitamento de garrafas, rolhas e lacres de marcas conhecidas para enganar consumidores.
  • Desvio na cadeia de distribuição: bebidas legítimas que são desviadas e misturadas a solventes ou álcool impróprio para consumo.
  • Contrabando: entrada irregular de bebidas no país, posteriormente "batizadas" com substâncias tóxicas.

Em menor escala, também pode haver fraude diretamente no ponto de venda, como bares e casas noturnas, quando o conteúdo é diluído para "render" mais.

Segundo o advogado, esse cenário evidencia falhas estruturais na fiscalização. A multiplicação dos casos é favorecida por fatores, como equipes reduzidas de fiscalização, foco excessivo nos grandes produtores em detrimento dos demais elos da cadeia, falta de inteligência para rastrear distribuidores "laranjas", fronteiras vulneráveis ao contrabando, atrativo econômico do metanol — mais barato que o etanol — e a baixa conscientização dos consumidores.

O que pode ser feito para evitar situações como essa?

Moreira destaca que a legislação brasileira dispõe de mecanismos para prevenir a adulteração de bebidas. O Código de Defesa do Consumidor estabelece deveres de segurança e informação, prevê o recall de produtos perigosos (arts. 8º a 10), impõe a responsabilidade objetiva dos fornecedores e autoriza a aplicação de sanções administrativas. Além disso, existem normas sanitárias, impostas pela Anvisa e pelas vigilâncias estaduais e municipais, que determinam boas práticas de fabricação e armazenagem. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) também atua no licenciamento e fiscalização de diversas categorias de bebidas. No campo criminal, o artigo 272 do Código Penal e a Lei nº 8.137/90 punem a adulteração e a venda de produtos impróprios para consumo.

Na avaliação de Rodrigo Sayeg, entretanto, é preciso reforçar a aplicação dessas normas com medidas práticas, como intensificação da fiscalização em pontos de venda e distribuidoras, campanhas de conscientização voltadas a consumidores e comerciantes, estímulo a denúncias anônimas por canais oficiais e ações conjuntas entre órgãos de segurança e saúde pública.

 


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